Enquanto o Céu Não me Espera (2024)

O sertão virou mar; o mar virou sertão

título original (ano)
Enquanto o Céu Não me Espera (2024)
país
Brasil
gênero
Drama
duração
80 minutos
direção
Christiane Garcia
elenco
Irandhir Santos, Priscilla Vilela, Maycon Douglas, Jully Fabielly, Cauãn Eduardo
visto em
57º Festival de Brasília (2024)

Era uma casa muito engraçada
Não tinha teto, não tinha nada
Ninguém podia entrar nela não
Porque na casa não tinha chão

Desde as primeiras cenas, Rita (Priscilla Vilela) está desesperada. Ela leva uma vida dura junto ao marido Vicente (Irandhir Santos) e os filhos. O trabalho dele é mal remunerado; os meninos não estudam, nem desempenham nenhuma atividade. As águas já entram no casebre modesto onde habitam. Ela suplica ao marido, sem sucesso, que saiam dali — afinal, todos estão indo embora. Enquanto o Céu Não me Espera começa em alto nível de tensão e dramaticidade, e só aumenta a partir deste instante. 

Os criadores compreendem Drama com um D maiúsculo, no sentido de confrontos com a morte, tristezas profundas, doenças, abandono. Tudo precisa ser exteriorizado, de modo que a trama salta de uma reviravolta à seguinte: no começo, um filho está doente (mesmo que seja difícil acreditar na modesta tosse do menino). O outro mostra um corte na mão. Na cena seguinte, um personagem morre. Diante do cadáver, o familiar tenta o suicídio. Grita-se de agonia, com direito ao close-up no rosto exasperado. 

Os personagens mal ganham tempo de processar o que lhes ocorre, pois outra guinada chega para suplantar a possibilidade de reflexão ou dúvida. Este seria, no sentido estrito do termo, um filme de ação. Machuca-se a perna e volta-se para as águas na cena seguinte; converte-se a uma religião de modo repentino, sofrendo com a rejeição pela nova crença instantes mais tarde. Uma prostituta aparece, desaparece, reaparece sem motivação nenhuma. É estranha a sensação de assistirmos ao longo teaser de um filme maior, de desenvolvimento mais cuidadoso.

Alguns filmes se apaixonam tanto pelo retrato da miséria que preferem representar a dor de seus personagens a representar personagens com dor.

A diretora Christiane Garcia procura fazer um filme duro, cru — uma atualização da premissa do mundo cão. Por isso, retira do filme as cores (tudo é acinzentado, nublado, triste), diminui ruídos ou contato com a natureza. Prefere que seus personagens sejam limitados a um aspecto animalesco, culminando na cena de sexo que beira a violência conjugal — nem o gozo produz alguma forma de prazer a Rita. Os três filhos são desprovidos de uma única cena de alegria, de brincadeira, de concepção de planos para o futuro. 

A mãe também se reduz à condição de vítima: o longa-metragem nutre piedade por ela, em sua condição de mártir da família patriarcal. Nem mesmo o afastamento do lar vem por conta própria: a personagem será fruto das decisões tomadas pelo marido, ou do acaso imposto pela natureza. Amedrontada e chorosa, ela se vai (e o filme prefere ficar ao lado de Vicente no final, numa postura eticamente condenável). A obra nem sabe ao certo a quem pertence o ponto de vista: observamos o mundo pelos olhos de Rita? De Vicente? De Firmino, o filho mais velho? De nenhum deles? Mistério.

Enquanto o Céu Não me Espera soa como um filme-denúncia, embora não saiba ao certo o que pretende denunciar. Revolta-se contra a miséria da sociedade? Contra o machismo dos núcleos tradicionais? Contra as condições precárias de trabalho, ou contra o destino duro das mulheres? Todas as opções anteriores? Nota-se a raiva, o descontentamento, a vontade de gritar contra tudo o que está aí. Em contrapartida, falta foco a esta narrativa que abandona seus protagonistas sem real interesse pelo futuro de cada um, ou pelos sentimentos decorrentes do caos.

Os atores ficam perdidos na indefinição de tons e objetivos. Irandhir Santos demonstra o comprometimento habitual, enquanto Priscilla Vilela entrega-se a Rita como faria a uma Medéia contemporânea. Entretanto, a narrativa jamais sugere a intimidade prévia entre eles, o amor que já tiveram um dia, a afinidade cotidiana. Eles partem de um ponto de quase-ruptura, que dificulta a tarefa de vislumbrar como um dia já formaram uma família contente. Rita já trabalhou? Qual era a relação com os vizinhos que partiram? Eles têm parentes, amigos? Como se sente em relação ao antigo companheiro, e pai de seu primeiro filho?

O projeto carece de tempo passado com estas figuras, e de interesse real pelos mesmos quando não estão sofrendo. Alguns filmes se apaixonam tanto pelo retrato da miséria que preferem representar a dor de seus personagens a representar personagens com dor. Por isso, multiplica os gestos novelescos (a revelação da paternidade via foto), os atos de bravura ou impulsividade (as cenas do barco e do quadro), as frases perversas vindas de um rádio que, convenientemente, enfia o dedo na ferida da mulher em luto: “Não seria melhor que o seu filho não tivesse nascido? Que o teu ventre fosse estéril?”

O drama chega aos festivais pouco tempo após Manas e O Barulho da Noite, com os quais guarda afinidades. Embora mire na vida cotidiana do primeiro, aproxima-se da perversidade do segundo, que adora reduzir testemunhar o sacrifício irremediável de suas mulheres e crianças. Ironicamente, oferece uma versão fluvial do nosso cinema de sertão, sobretudo nos moldes dos anos 1990 e 2000, quando a produção brasileira adorava multiplicar as histórias de casais morrendo de sede e fome, juntos aos filhos pequenos, nos terrenos áridos do “Brasil profundo”. 

Agora, troca-se a seca pelo alagamento, e a infinitude de terra pela imensidão de águas. O Brasil continua inóspito, os cidadãos permanecem abandonados à própria sorte. Não têm a quem recorrer, não sabem contra quem se rebelar; não possuem laços afetivos duradouros. Logo, apenas sucumbem, enquanto o filme contempla a decadência daqueles que já começam a trama no patamar mais baixo da pirâmide social, num aviso alarmante de que o desalento existe. 

Não estamos muito distantes, afinal, de um drama cristão, povoado por prostitutas redimidas, matriarcas convertidas à fé, pequenos carneiros sacrificados ao Deus todo-misericordioso e todo-punitivo, simultaneamente. Os familiares começam a jornada pelo fim de suas esperanças e, a partir disso, apenas sofrem o destino implacável que lhes é imposto. Ninguém na região testemunha a derrocada deste núcleo, para além do espectador cúmplice e voyeur. Este Brasil derrotista e conformista engole seus cidadãos sem real interesse pelas origens do afogamento, nem pela possibilidade de superá-lo.

Enquanto o Céu Não me Espera (2024)
3
Nota 3/10

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