Enquanto Vivo (2021)

Doutores da alegria

título original (ano)
De Son Vivant (2021)
país
França, Bélgica
gênero
Drama
Duração
122 minutos
direção
Emmanuelle Bercot
elenco
Benoît Magimel, Catherine Deneuve, Gabriel A. Sara, Cécile de France, Lou Lampros, Oscar Morgan, Melissa George, Clément Ducol, Olga Mouak
visto em
Cinemas

Todas as cenas de Enquanto Vivo (2021) estão relacionadas à morte iminente do professor de teatro Benjamin (Benoît Magimel). Todas, sem exceção. O drama se inicia no hospital, quando ele recebe a confirmação do câncer de pâncreas em fase avançada, e terminará na mesma instituição. A mãe do protagonista (interpretada por Catherine Deneuve) aparece apenas para lamentar ou comentar a saúde do filho. Seu médico, Dr. Eddé (Gabriel Sara) não tem outro paciente além de Benjamin. Nas aulas de teatro, os alunos encenam monólogos sobre a morte e a despedida de entes queridos.

A diretora e roteirista Emmanuelle Bercot tem demonstrado uma compreensão clássica do drama, visto aqui com D maiúsculo. Não basta que os personagens carreguem conflitos próprios: eles precisam estar à beira da morte, chorando o fim iminente, desfazendo relacionamentos, ouvindo músicas tristes, brigando contra este destino inevitável. Nenhum personagem terá vida própria para além deste dilema: fora do ambiente hospitalar, a mãe Crystal deixa de existir, e os alunos servem apenas para ecoar as falas do mestre. A diretora tem mão pesada, concentrando numa única jornada a maior avalanche emocional que puder.

A doença em questão poderia ser avaliada por inúmeras perspectivas. Uma delas seria de ordem biológica e médica, quando os roteiros se dedicam aos tratamentos, os efeitos de novos medicamentos, as sessões de quimioterapia e radioterapia. Certos projetos preferem uma abordagem política e social, destacando a dificuldade financeira ligada ao tratamento, além da desigualdade no atendimento (vide o recente A Fratura). Outra possibilidade se encontraria no cinema de urgência, quando personagens correm para efetuar tudo aquilo não puderam realizar até o momento.

No entanto, este filme francês opta por um caminho distinto, e bastante curioso. Aqui, a doença é uma questão de moral. Os diálogos e interações se preocupam com o sentimento de culpa carregado pelas vítimas e familiares, pelas saudades, os remorsos, o medo da finitude. Entram em cena os pacientes com postura de heróis vencedores, os chantagistas, aqueles que se enxergam como mártires. O principal espelho para estas atitudes se encontra no Dr. Eddé, um especialista na arte do luto em ambiente hospitalar, dando cursos regulares aos demais funcionários sobre como valorizar o caráter humano da profissão.

Este personagem constitui o elemento definidor de Enquanto Vivo como cinema e visão de mundo. Mais do que um perito e um colega, ele se converte num oráculo, um motor inesgotável de conhecimento e sabedoria. O sujeito tem sempre um sorriso nos lábios, pronuncia as palavras certas a todo momento, e demonstra disponibilidade infinita a Benjamin e seus familiares. Eddé se comunica em frases de efeito, com trechos de música, com abraços carinhosos. Ele se torna o Patch Adams francês, um super-médico idealizado e gentil ao limite do inverossímil. 

Neste hospital, dançarinos apresentam espetáculo de tango aos doentes, e um homem ao violão toca uma música da escolha de cada interno. Ao ser insultado, o artista sorri e toca mesmo assim. Médicos reúnem-se para sessões de aprendizado e discussão filosófica (ou de autoajuda, como preferir) que remetem a uma mistura entre terapia de grupo e biodança. No final, todos cantam, dançam, choram se quiser. Esta visão heterodoxa da medicina tradicional nunca se contrasta com outros modos de tratamento. Aqui, o arco-íris de afeto e afagos soa como única alternativa de tratamento.

Isso se traduz em algumas cenas difíceis de aceitar pela perspectiva naturalista, sobretudo na reta final. A morte é embalada em violinos, somados a uma canção folk ao violão e à imagem do pôr do sol no horizonte. Uma enfermeira faz sexo com o paciente, porque o carinho aparentemente lhe transborda o corpo (mas ninguém enxerga nenhuma transgressão ética ali). Eugénie (Cécile de France) adentra o quarto coroada por um halo angelical; uma lágrima do rosto do enfermo é utilizada como perfume; o corpo deteriorado passa a ser visto por planos inclinados e aéreos, como subjetivas de um olhar divino. Em paralelo, o rapaz adulto é carregado como um bebê de colo. A sentimentalidade se faz tão explícita que beira o ridículo.

Ao menos, os atores se entregam com um comprometimento exemplar, evitando sublinhar o aspecto melodramático evidente. Catherine Deneuve, Benoît Magimel e Cécile de France partem para composições simples, oferecendo um corpo presente (o termo será devidamente explicado nas aulas de teatro de Benjamin) e deixando que a situação transmita o sofrimento, mais do que os rostos. Apenas o jovem Oscar Morgan, no papel do filho distante, soa deslocado do contexto. O rapaz sustenta uma aparência constante de meio-sorriso, incoerente com a situação, e aparenta ter sido escolhido somente pelos dotes vocais explorados na conclusão. Antes disso, revela-se incapaz de representar a relação conflituosa com o patriarca.

Há um espaço no circuito, sem dúvida, para dramas como Enquanto Vivo e para esta linguagem da exteriorização, na qual todas as dores precisam ser traduzidas no corpo, e qualquer personagem existe apenas para orbitar em torno do protagonista. É fácil chorar com estas figuras nos instantes tristes, rir nos momentos de leveza, ficar preocupado quando o quadro se agrava. O cinema se transforma em montanha-russa de sentimentos, buscando se conectar diretamente com as emoções mais epidérmicas do espectador. 

Dificilmente sobrará qualquer reflexão pertinente ao final da sessão, mas durante duas horas de narrativa, o público terá experimentado uma proposta de catarse coletiva por meio dos abraços, lágrimas e cantoria. Não por acaso, embora a religião esteja ausente desta proposta, o drama carrega uma estética próxima das jornadas cristãs de redenção e autodescoberta graças à proximidade com a morte. Nada como uma doença incurável para unir famílias, extravasar amores e relembrar os moribundos de suas virtudes.

Enquanto Vivo (2021)
4
Nota 4/10

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