Todas as cenas de Enquanto Vivo (2021) estão relacionadas à morte iminente do professor de teatro Benjamin (Benoît Magimel). Todas, sem exceção. O drama se inicia no hospital, quando ele recebe a confirmação do câncer de pâncreas em fase avançada, e terminará na mesma instituição. A mãe do protagonista (interpretada por Catherine Deneuve) aparece apenas para lamentar ou comentar a saúde do filho. Seu médico, Dr. Eddé (Gabriel Sara) não tem outro paciente além de Benjamin. Nas aulas de teatro, os alunos encenam monólogos sobre a morte e a despedida de entes queridos.
A diretora e roteirista Emmanuelle Bercot tem demonstrado uma compreensão clássica do drama, visto aqui com D maiúsculo. Não basta que os personagens carreguem conflitos próprios: eles precisam estar à beira da morte, chorando o fim iminente, desfazendo relacionamentos, ouvindo músicas tristes, brigando contra este destino inevitável. Nenhum personagem terá vida própria para além deste dilema: fora do ambiente hospitalar, a mãe Crystal deixa de existir, e os alunos servem apenas para ecoar as falas do mestre. A diretora tem mão pesada, concentrando numa única jornada a maior avalanche emocional que puder.
A doença em questão poderia ser avaliada por inúmeras perspectivas. Uma delas seria de ordem biológica e médica, quando os roteiros se dedicam aos tratamentos, os efeitos de novos medicamentos, as sessões de quimioterapia e radioterapia. Certos projetos preferem uma abordagem política e social, destacando a dificuldade financeira ligada ao tratamento, além da desigualdade no atendimento (vide o recente A Fratura). Outra possibilidade se encontraria no cinema de urgência, quando personagens correm para efetuar tudo aquilo não puderam realizar até o momento.
No entanto, este filme francês opta por um caminho distinto, e bastante curioso. Aqui, a doença é uma questão de moral. Os diálogos e interações se preocupam com o sentimento de culpa carregado pelas vítimas e familiares, pelas saudades, os remorsos, o medo da finitude. Entram em cena os pacientes com postura de heróis vencedores, os chantagistas, aqueles que se enxergam como mártires. O principal espelho para estas atitudes se encontra no Dr. Eddé, um especialista na arte do luto em ambiente hospitalar, dando cursos regulares aos demais funcionários sobre como valorizar o caráter humano da profissão.
Este personagem constitui o elemento definidor de Enquanto Vivo como cinema e visão de mundo. Mais do que um perito e um colega, ele se converte num oráculo, um motor inesgotável de conhecimento e sabedoria. O sujeito tem sempre um sorriso nos lábios, pronuncia as palavras certas a todo momento, e demonstra disponibilidade infinita a Benjamin e seus familiares. Eddé se comunica em frases de efeito, com trechos de música, com abraços carinhosos. Ele se torna o Patch Adams francês, um super-médico idealizado e gentil ao limite do inverossímil.
Neste hospital, dançarinos apresentam espetáculo de tango aos doentes, e um homem ao violão toca uma música da escolha de cada interno. Ao ser insultado, o artista sorri e toca mesmo assim. Médicos reúnem-se para sessões de aprendizado e discussão filosófica (ou de autoajuda, como preferir) que remetem a uma mistura entre terapia de grupo e biodança. No final, todos cantam, dançam, choram se quiser. Esta visão heterodoxa da medicina tradicional nunca se contrasta com outros modos de tratamento. Aqui, o arco-íris de afeto e afagos soa como única alternativa de tratamento.
Isso se traduz em algumas cenas difíceis de aceitar pela perspectiva naturalista, sobretudo na reta final. A morte é embalada em violinos, somados a uma canção folk ao violão e à imagem do pôr do sol no horizonte. Uma enfermeira faz sexo com o paciente, porque o carinho aparentemente lhe transborda o corpo (mas ninguém enxerga nenhuma transgressão ética ali). Eugénie (Cécile de France) adentra o quarto coroada por um halo angelical; uma lágrima do rosto do enfermo é utilizada como perfume; o corpo deteriorado passa a ser visto por planos inclinados e aéreos, como subjetivas de um olhar divino. Em paralelo, o rapaz adulto é carregado como um bebê de colo. A sentimentalidade se faz tão explícita que beira o ridículo.
Ao menos, os atores se entregam com um comprometimento exemplar, evitando sublinhar o aspecto melodramático evidente. Catherine Deneuve, Benoît Magimel e Cécile de France partem para composições simples, oferecendo um corpo presente (o termo será devidamente explicado nas aulas de teatro de Benjamin) e deixando que a situação transmita o sofrimento, mais do que os rostos. Apenas o jovem Oscar Morgan, no papel do filho distante, soa deslocado do contexto. O rapaz sustenta uma aparência constante de meio-sorriso, incoerente com a situação, e aparenta ter sido escolhido somente pelos dotes vocais explorados na conclusão. Antes disso, revela-se incapaz de representar a relação conflituosa com o patriarca.
Há um espaço no circuito, sem dúvida, para dramas como Enquanto Vivo e para esta linguagem da exteriorização, na qual todas as dores precisam ser traduzidas no corpo, e qualquer personagem existe apenas para orbitar em torno do protagonista. É fácil chorar com estas figuras nos instantes tristes, rir nos momentos de leveza, ficar preocupado quando o quadro se agrava. O cinema se transforma em montanha-russa de sentimentos, buscando se conectar diretamente com as emoções mais epidérmicas do espectador.
Dificilmente sobrará qualquer reflexão pertinente ao final da sessão, mas durante duas horas de narrativa, o público terá experimentado uma proposta de catarse coletiva por meio dos abraços, lágrimas e cantoria. Não por acaso, embora a religião esteja ausente desta proposta, o drama carrega uma estética próxima das jornadas cristãs de redenção e autodescoberta graças à proximidade com a morte. Nada como uma doença incurável para unir famílias, extravasar amores e relembrar os moribundos de suas virtudes.