Entre Vênus e Marte (2024)

A arte debochada

título original (ano)
Entre Vênus e Marte (2024)
país
Brasil
gênero
Experimental, Fantasia, Ficção Científica, Comédia
duração
61 minutos
direção
Cris Ventura
elenco
Ed Marte, Nickary Aycker, Fredda Amorim
visto em
13º Olhar de Cinema — Festival Internacional de Curitiba

Entre Vênus e Marte é o tipo de filme que desperta sorrisos de incredulidade. Dentro da sala de cinema, as pessoas riam de desconforto, devido à incapacidade de decifrar tudo aquilo que se passava na tela. Calma aí, Ed Marte é um viajante espacial? Mas agora estas cenas são documentais? Então os personagens participam de uma gaymada? A maratona de zumbis corresponde às motociatas de Jair Bolsonaro? É isso mesmo? 

A narrativa se bifurca, se modifica, se transforma. Brinca consigo mesma a todo instante — ninguém, desde a cineasta Cris Ventura até Ed Marte e os demais nomes do elenco, acredita na premissa do guerreiro não-binário contra o Governo do Caos e os Patriotroopers, enquanto luta para salvar a Princesa Nickary. Trata-se de uma paródia à enésima potência: a chacota da chacota dos códigos mais conhecidos da política, da cultura pop, dos memes e gírias LGBTQIA+. 

“Toda arte é debochada”, decreta a protagonista, em um slogan que simboliza a obra na sua totalidade. Aqui, a sátira constitui meio e finalidade. A autora compreende que a exploração das regras do cinema de ficção científica heteronormativo (Star Wars e Star Trek, especialmente) pode representar, em si própria, uma subversão digna do cinema queer. Assim, aposta em ritmos, cores e metáforas apropriadas a esta comunidade, que luta contra o crescimento do conservadorismo. 

Entre Vênus e Marte surge da compreensão que o audiovisual politizado contemporâneo passa necessariamente pelo corpo, pelas pautas identitárias, pela ocupação do espaço público e pela apropriação dos códigos cinematográficos advindos do cinema de gênero.

É possível apontar a atualidade desta proposta num Brasil disposto a punir mulheres que abortam com severidade superior àquela de seus estupradores. No entanto, a iniciativa ainda seria atual em qualquer época — afinal, testemunhamos atrocidades semelhantes em anos anteriores. Entre Vênus e Marte surge da compreensão que o audiovisual politizado contemporâneo passa necessariamente pelo corpo, pelas pautas identitárias, pela ocupação do espaço público e pela apropriação dos códigos cinematográficos advindos do cinema de gênero.

Um dos méritos desta premissa anárquica reside na capacidade de trazer leveza e humor ao ativismo explícito. O cinema de denúncia costuma se associar à ira, aos dedos apontados e à voz elevada. “Não passarão!”. “Ele não!”. Aqui, os discursos bastante eloquentes de Ed Morte e dos passantes na feira de Belo Horizonte se combinam com performances LGBTQIA+ e com uma nave espacial onde a cobertura de papel alumínio se encarrega de representar o imaginário do sci-fi

O ideal de seriedade se encontra com o ápice da autoparódia, percebendo a capacidade de dialogar com o espectador para além da afronta e da estratégia de antagonizar vozes adversas. Neste aspecto, é óbvio que o longa-metragem busca se comunicar com o interlocutor progressista disposto a embarcar em tal viagem — alguém consegue imaginar um representante da ultra-direita pagando o ingresso desta sessão? Ventura possui a lucidez de se dirigir ao espectador presumido queer, ou, pelo menos, receptivo a tais formas de linguagem. 

Distante de pregar a conversão a um determinado espectro ideológico, ela oferece um horizonte de subversão representado pelo homem não-binário, de certa idade, encarnando a figura masculina e cis-hétero do príncipe salvador. A cineasta não aparenta ter eleito o aspecto disruptivo por se tratar do formato mais adequada à narrativa, e sim porque esta ferramenta constitui a própria narrativa. A liberdade se transmite na aparência de improviso, nas interações brincalhonas, lúdicas, coletivas e cooperativas. 

Neste sentido, a autora também evita o vale-tudo, a aleatoriedade tentadora em projetos experimentais. O filme ostenta bom ritmo, apesar de uma ou outra cena arrastada demais pela montagem (a folia na “praia urbana”). De modo geral, instantes de furor se alternam com outros melancólicos, a exemplo do belíssimo número musical noturno, quando a borboleta queer dança “rumo às estrelas”. Enquanto isso, uma comicidade mais afrontosa (as comunicações com Suvaca e Trekinho) se intercala com diálogos de uma seriedade inesperada e, por isso mesmo, humorística (a descoberta da criatura das águas).

Entre Vênus e Marte também apresenta uma quantidade impressionante de efeitos visuais trash e caseiros. Ao invés de disfarçar e se envergonhar de seus meios reduzidos, a diretora os acentua até se converterem em estética e discurso. Este é o melhor caminho para um cinema metalinguístico, ao invés de minimizar as deficiências de produção na chave da seriedade. Para a representação de indivíduos marginais, encontra-se uma linguagem marginal. A lógica se sustenta.

Por fim, a sessão no Olhar de Cinema se revestiu de uma dupla ousadia: primeiro, aquela dos criadores em se lançarem em um projeto tão ostensivamente amador (no melhor sentido possível do termo), e segundo, aquela dos programadores que decidiram exibir a obra ao espectador local, no mesmo cinema onde passaram, poucos dias antes, filmes de Buster Keaton e William Friedkin. 

A decisão de posicionar esta proposta junto a tantas outras mais “sérias” e convencionais (habitualmente selecionadas em festivais) convida o espectador a considerá-las com o mesmo apuro e afeto do cinema de autor patriarcal, branco, europeu e heteronormativo, que povoa nosso imaginário. A descolonização do olhar começa por aí. Esta exibição ofereceu ao espectador a oportunidade raríssima de descobrir um filme que, de tão radical, apresenta perspectivas limitadas de lançamento comercial. Há muitas raridades envolvidas em apenas 60 minutos de experiência coletiva.

Entre Vênus e Marte (2024)
8
Nota 8/10

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