Eros (2024)

Post coitum, animal triste

título original (ano)
Eros (2024)
país
Brasil
Linguagem
Documentário
duração
108 minutos
direção
Rachel Daisy Ellis
visto em
27ª Mostra de Cinema de Tiradentes (2024)

Este longa-metragem mergulha em um terreno espinhoso. A diretora Rachel Daisy Ellis convida casais que aceitem se filmar durante um encontro em motéis, considerados “a maior instituição de sexo do Brasil”. (Há dados para isso? Superam os prostíbulos?). Os criadores partem então do material recebido, traduzindo uma visão de si próprios e daquilo que escolheram mostrar. Haveria inúmeras maneiras para este projeto dar errado: pelo sensacionalismo, pelo moralismo, pela isenção de responsabilidade (visto que os registros foram obtidos por terceiros), etc.

Eros está ciente das armadilhas pelo caminho. Por isso, decide se precaver, até demais. Para começar, a diretora se coloca num quarto de motel, em trajes mínimos, explicando ao espectador os motivos que a levaram a desenvolver o longa-metragem. Em consequência, previne-se da acusação de abusar da fragilidade dos outros enquanto recusa a se expor de modo semelhante. Através deste procedimento simbólico (ela não é vista nua, nem fazendo sexo, como os personagens) reduz a distância hierárquica separando cineasta e tema de estudo.

Cada personagem se converte em diretor e objeto de seu próprio filme, revelando somente aquilo que deseja, como achar melhor. O resultado das gravações consiste menos no sexo “natural” do que na maneira como gostariam de ser vistos nesta situação.

Em seguida, promove um retrato bastante amplo de casais e de perspectivas eróticas. Há personagens heterossexuais e homossexuais; há travestis, mulheres mais velhas, homens jovens e de meia-idade; pessoas negras e brancas; namorados, duplas casadas praticando swing e um sujeito encontrando-se com uma profissional do sexo. Por fim, um homem discute a sexualidade enquanto permanece solitário, no quarto de hotel, tal qual a diretora a princípio. O ciclo se fecha.

A montagem de Matheus Farias reserva as cenas mais explícitas e fervorosas para o início. A estratégia se justifica: para quem vai à sessão na única expectativa de encontrar alguma forma de sexo explícito em filme não pornográfico, a penetração estará disponível logo ali. Para quem se questionar “mas serão todos casais heterossexuais?”, a dupla gay surge no segundo episódio. A montagem e o roteiro — duas estruturas indissociáveis, neste caso — estão sempre um passo à frente dos dilemas éticos e sociais que se possa levantar.

Assim, passado o fetiche do espectador a respeito do fetiche do sexo alheio, o longa-metragem começa a abordar os seus verdadeiros temas. Isso porque o interesse nunca reside no voyeurismo do acesso às imagens sexuais alheias. Eros se preocupa em desconstruir a idealização do corpo e da sexualidade. Em primeiro lugar, compreende que o erotismo vai além do sexo. Está no toque, na percepção do corpo, no ato de ver e ser visto. Decorre das conversas, das insinuações, da imaginação. 

Logo, os instantes antes e depois do ato sexual, e a performatividade dos corpos no espaço artificial do motel lhe interessam mais. Existe um caráter inevitável de mise en scène nestas sequências: os quartos possuem espelhos no teto, jacuzzis que brilham no escuro, tetos retráteis, equipamentos de pole dance, vídeos eróticos na televisão. A concepção de um quarto para o sexo, em oposição àquele de casa, concebido para o descanso, provoca algumas fricções simbólicas interessantes.

Entram em cena os amantes evangélicos, o casal que frequenta o culto, a mulher libertária com fetiches de submissão e o homem com ansiedade, buscando na acompanhante uma boa conversa durante a noite. Essas pessoas são atravessadas por tabus e impeditivos morais, precisando encontrar alternativas para driblar a impossibilidade de praticar tais desejos no dia a dia. O casal de tatuados cogita instalar algemas no quarto de casa, porém decide que os objetos não seriam práticos. A dupla evangélica declara que todo lugar onde puserem os pés se tornará sagrado, e que precisam conhecer o antro de pecados para melhor combatê-lo. Cada um encontra a desculpa necessária à sua psique, no intuito de aceitar o desejo rejeitado pelos costumes tradicionais.

Em paralelo, as imagens traduzem um sintoma particular da pós-modernidade, quando as pessoas começam a fazer as pazes com a ideia de filmar seus corpos e expor sua sexualidade aos demais. Os canais pornográficos e redes sociais como Twitter permitiram a rápida proliferação deste tipo de autopornificação. Cada personagem se converte em diretor e objeto de seu próprio filme, revelando somente aquilo que deseja, como achar melhor. O resultado das gravações consiste menos no sexo “natural” do que na maneira como gostariam de ser vistos nesta situação.

Isso significa que se tornam elementos de ficção a partir do momento em que posicionam a câmera para si, controlando os ângulos, a luz e as ações, sabendo que o material será usado num projeto artístico adiante. Assim, o dispositivo se distancia das imagens cruas de Pacific (2009), de Marcelo Pedroso, quando a autoimagem dos ricos viajantes de um cruzeiro foram obtidas após o fim do percurso, quando nem suspeitavam do objetivo do cineasta em criar um longa-metragem. Ellis prefere — também por questões éticas, presume-se — ser transparente com os participantes e respeitar os limites de cada um. Até por isso, neste terreno da exposição, a montagem permite que um pênis seja borrado em pós-produção, em provável resposta a um pedido do rapaz.

É curioso que, em sua ampla maioria, os registros sejam controlados pelas mulheres — quando há uma mulher na interação, é claro. Elas determinam como filmar, em qual ângulo, e dominam a fala, face aos homem mais tímidos ao lado, virando o rosto e cobrindo o sexo. Vem delas esta libertação, este senso orgulhoso de gostar de sexo, sim, “e por que não?”. A câmera na mão representa uma ferramenta de empoderamento feminino, tanto para as mulheres, contentes de seus corpos e seus desejos, quanto para os homens decidindo assumir sua parcela de feminilidade — vide o episódio final.

Eros se torna progressivamente triste, melancólico, até terminar literalmente na solidão de um sujeito emudecido em posição fetal. Na sala de cinema, o público da Mostra de Tiradentes ria efusivamente, sobretudo em função do desconforto de assistir a cenas de sexo, algumas delas explícitas, ao lado de desconhecidos numa sala escura. Neste instante, lembra-se que o próprio ato de ir ao cinema constitui um gesto carregado de tensão sexual, e que, por este mesmo motivo, era considerado uma depravação cem anos atrás, quando as salas de cinema (muito menos escuras do que hoje) foram criadas. 

As pessoas riam da mulher que leva um livro ao motel, do rapaz que ama as rochas instaladas na parede do banheiro, do tipo que cansa a garota de programa com seu palavrório interminável. Em última instância, riam também de si próprias, por se reconhecerem em situações parecidas que talvez tenham vivido, ou imaginado viver. Divertiam-se no desconforto de falar sobre aquilo que se fala, assistir àquilo que não se mostra. Eros supera a vontade de chocar. Ele não se considera particularmente revolucionário ou ousado em exibir algo que considera natural.

Até por isso, pode resultar uma estranha sensação de frustração, um “era só isso?”. A culpa deste sentimento se encontra menos no longa-metragem do que na expectativa de algo catártico, sórdido e bombástico relacionado ao sexo entre duas pessoas. As imagens caseiras deste filme contradizem a idealização do pornô, com seus corpos perfeitos, orgasmos profundos e prazeres intensos. Aqui, os casais transam rápido, comem um prato de comida juntos, falam sobre Jesus, relembram a transfobia vivida por tanto tempo. O sexo, quem diria, é apenas uma das coisas que se pode fazer neste templo do sexo, concebido para mil prazeres. 

Ainda que exista uma representação de si próprio, estas interações “reais” demonstram que o erotismo pode ser melancólico, triste, banal, curto, desinteressante, ou minimamente prazeroso. Os corpos podem ser apenas corpos, ao invés de elementos de pecado, de profanação, de culpa. O fetiche de uma sexualidade explosiva provém justamente daqueles que a condenam, e que, sem dúvida, pensam em sexo e falam nele com mais frequência do que as pessoas que o praticam no cotidiano. 

O documentário oferece um sexo tão natural quanto pedir uma pizza ou dormir na cama quanto se está com sono. No avesso do espetáculo reside a potência do longa-metragem.

Eros (2024)
8
Nota 8/10

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