Nas primeiras imagens de Estranho Caminho, David (Lucas Limeira) tem um estranho sonho com o pai. O rosto deste homem surge tal qual uma fantasmagoria, em múltiplas cores, através de flashes insistentes. O rapaz terá outros problemas com que se preocupar — o início da pandemia de Covid-19 em Fortaleza, a exibição de seu longa-metragem de estreia num festival de cinema —, no entanto, a questão paterna corresponde ao dilema central, capaz de mover a narrativa.
Trata-se de uma obra de deslocamentos, ainda que em círculos. O herói cearense vive em Lisboa, mas retorna à cidade natal em função do festival. Ele percorre várias ruas atrás do vulto paterno, atravessando avenidas invariavelmente vazias. Anda pelas areias vazias da praia, ocupa um pensionato na condição de único hóspede. Diante de um problema de saúde, corre ao hospital, e de volta à casa, sem perceber uma viva alma no trajeto. No entanto, aparenta jamais sair do lugar. Devido ao coronavírus, não pode retornar ao país, nem se locomover livremente.
O projeto abraça a aparência de abandono deixada pela crise sanitária. As restrições chegaram sem que se acreditasse de fato em sua gravidade, ou se pudesse prever a duração do fenômeno. As pessoas ainda se encontravam, no entanto, com receio de se tocar, e questionando a eficácia das medidas adotadas. Colocaram máscara, tiraram máscara, desinfectaram as compras, fecharam as portas. Desaprendemos a lidar com o corpo e a presença do outro, enquanto sentimos a necessidade crescente de afeto e contato humano.
Estranho Caminho se mostra uma obra generosa com o público, no sentido de esclarecer as suas metáforas, acompanhar os dilemas de maneira linear e clara, e garantir uma recompensa emocional na conclusão.
Neste contexto de contradições se insere a busca de David pelo pai. O garoto mente a si próprio, declarando não ter interesse na reunião com o sujeito por quem foi abandonado. Em contrapartida, desloca-se quase automaticamente à casa deste homem quando se vê em situação de necessidade. De certo modo, o perigo típico da Covid, de encostar em alguém, ou de ser mortalmente afetado por quem se ama, representa muito bem a situação do personagem central. O coronavírus opera tanto na função de lembrete de um passado recente quanto de metáfora para um estado de espírito.
O diretor Guto Parente se esforça para combinar, com sutileza, a naturalidade das falas e a estranheza das situações. Por um lado, as conversas de David com a esposa portuguesa e os amigos locais carregam uma espontaneidade e riqueza de vocabulário bastante comuns no registro oral, e raros de encontrar em diálogos cinematográficos. É possível acreditar na interação entre estes personagens graças, sobretudo, à maneira como se portam e comunicam. Neste sentido, proporcionam uma bela crônica da juventude cearense contemporânea.
Além disso, contam com atuações seguras, pois desafetadas, e avessas a qualquer vaidade. Lucas Limeira está excelente no papel central, tanto nos instantes em que se impõe (a fala permanece calma, e o corpo, retraído) quando na reação às violências progressivas do pai. Este último o acolhe fisicamente em casa, embora insista que o garoto não é bem-vindo no local. Carlos Francisco ilustra um sujeito obsessivo, contraditório (e por isso mesmo, verossímil), cujas atitudes inesperadas proporcionam uma bem-vinda cota de humor e leveza.
Para cada ferramenta de tensão, em termos de luz e montagem (os planos parecem durar alguns segundos a mais do que o naturalismo, de modo a suscitar estranhamento), alguma tirada tragicômica proporciona um respiro ao espectador. Estranho Caminho se mostra uma obra generosa com o público, no sentido de esclarecer as suas metáforas, acompanhar os dilemas de maneira linear e clara, e garantir uma recompensa emocional na conclusão. Para um cineasta habituado a obras mais herméticas, Guto Parente procura desta vez um alcance mais amplo de público.
Isso significa trabalhar com rostos cuidadosamente enquadrados no centro da imagem, quase sempre em perfil ou três-quartos, banhados pela luz impecavelmente desenhada por Linga Acácio. Ainda que David transpire, ou o pai se jogue de maneira despreocupada na cama, eles são registrados com uma elegância e um senso impecável de rigor. A luz precisa contrasta diretamente com a bagunça do apartamento do pai, e com o caos da interação conflituosa entre ambos.
Logo, os espaços e as interações podem ser explosivos, entretanto, a linguagem escolhida para representá-los remete à banalidade. Até por isso, os aspectos fantásticos serão vistos apenas por David e pelo espectador. Para as demais figuras que o cercam, o mundo segue “normal” — ou no “novo normal” dentro do possível em tempos pandêmicos. A revelação final, que talvez ganhasse ares espetaculares num suspense hollywoodiano, se concretiza por meio de uma banalidade voluntariamente anticlimática.
Caso Parente o desejasse, poderia oferecer uma obra grotesca, radical, sem meios-termos, tal qual os divertidos fragmentos do filme de terror dirigido pelo protagonista. Após a exibição destas imagens, a narrativa que a engloba soa ainda mais comportada, doce e posada. O projeto procura abordar temas graves sem recorrer à denúncia, tocar em questões delicadas sem manipular as emoções do espectador. Prefere deixar os gritos, choros e espantos presos na garganta, ou sugeridos pela atuação contida, e ocultos num importante salto da montagem.
Ao final, restarão acordes de pianos tristes e movimentos delicados de câmera, tal qual um drama tradicional, embora tenhamos presenciado guinadas substanciais em cena. Nesta articulação improvável de tons e percepções (o pequeno e o grandioso, o público e o privado, o real e o imaginário) se encontram as qualidades de uma obra de aparência singela, que prefere sugerir horrores a concretizá-los. Caberá a cada espectador imaginar, a partir de seu repertório particular, as perturbações sugeridas pelo desfecho.