Mamonas Assassinas: O Filme (2023)

A rebeldia conservadora

título original (ano)
Mamonas Assassinas: O Filme (2023)
país
Brasil
gênero
Biografia, Drama, Comédia
duração
95 minutos
direção
Edson Spinello
elenco
Ruy Brissac, Rhener Freitas, Adriano Tunes, Robson Lima, Beto Hinoto, Fefe Schneider, Jessica Córes, Jarbas Homem de Mello
visto em
Cinemas

Eles saíram de uma situação de dificuldade financeira, e se tornaram famosos em todo o país. Este caso do sucesso é repetido em cada cena de Mamonas Assassinas: O Filme, cinebiografia menos interessada em música e mecanismos de fama do que na crença que dar certo, no Brasil, significa ter dinheiro, mulheres e espaço na televisão. O projeto celebra o fato que os artistas deram certo, pois, nas palavras do vocalista, “o impossível não existe”.

A direção insiste em transformar a trajetória de exceção num caso exemplar, no qual todos poderiam se inspirar — algo curioso, dado o final trágico da banda. Por isso, inclui um sem-número de frases de efeitos inspiradoras. O próprio “o impossível não existe” chegou a figurar como subtítulo da obra durante o processo de criação. “Uma vez o Dinho me disse que o impossível não existe. Ele me convenceu”, afirma um diálogo. A frase se repete durante um show.

“Você nunca quis a estrela só, você sempre quis o céu inteiro”, declara o pai do vocalista. “Pai, é o senhor que me inspira a vencer todas as batalhas da vida”, este responde. “Você pode ser o que quiser”, profetiza nos palcos. Diante da namorada que o trai, Dinho (Ruy Brissac) lança aos ares: “Eu vou ser alguém! Eu vou fazer sucesso!”. É óbvio que a promessa soa como mero reconforto: o longa-metragem existe precisamente porque sabemos da celebridade futura. 

Uma mistura incoerente entre meritocracia e recompensa divina. Ou se defende que os jovens ascenderam porque se esforçaram muito, ou porque encontraram os rumos traçados por eles, dos quais nunca poderiam fugir.

O diretor Edson Spinello trata a ascensão dos Mamonas enquanto história premonitória. O quinteto não apenas desejava muito a fama, mas também sabia que se tornaria famoso. O cineasta insiste na premonição do membro da banda quanto ao acidente aéreo. Ao avistar uma mulher, Dinho declara: “Acabei de ver a mulher da minha vida”. Para Spinello, o talento se confunde com uma vocação espiritual a prever o destino. 

Trata-se de uma mistura incoerente entre meritocracia e recompensa divina. Ou se defende que os jovens de Guarulhos ascenderam porque se esforçaram muito, e possuíam talento verídico, ou porque encontraram os rumos traçados por eles, dos quais nunca poderiam fugir. Os dois juntos se revelam incompatíveis, no entanto, o roteiro efetua malabarismos para combinar méritos da terra e dos céus, do humano e do além. Contanto que transmita uma imagem grandiloquente e elogiosa dos protagonistas, está valendo.

No intuito de sublinhar a conquista, o diretor precisa acentuar os dois polos onde se encontravam os Mamonas: a pobreza a princípio, e a riqueza posterior. Logo, o início sublinha cargos considerados baixos ou humilhantes: go go boy, trabalhador em ferro-velho, motoboy. Em seguida, com as músicas tocando no rádio (é claro que, ao ligarem o aparelho, os músicos descobrem a própria canção no ar), conquistam absolutamente todas as mulheres que desejam, e recebem a oferta de voarem de avião a vários Estados (o roteiro insiste no símbolo trágico da aeronave).

Ora, falta sutileza e, sobretudo, complexidade, ao tratamento humano e psicológico de Mamonas Assassinas: O Filme. Cada tomada sublinha a mão pesada da direção, o roteiro machista e grosseiro, a direção de arte mais apropriada a uma esquete de comédias. O espectador precisa superar, já no terço inicial, a estética de penteados e figurinos pavorosos; sequências inverossímeis de comício político; e uma primeira apresentação de Sweet Child of Mine com som fora de sincronia, marcada por problemas de continuidade e montagem.

Em seguida, surgem estas coincidências do destino, todas de caráter moral (e moralista). Dinho recebe a resposta negativa para um trabalho e, dois passos depois, na mesma rua, cruza com a namorada da época, saindo com outro rapaz. Ela o humilha por ser pobre, afirmando que prefere o dinheiro do novo acompanhante. A encenação possui o nível de uma comédia caseira do TikTok, porém os criadores acreditam estar plantando uma semente de determinação no protagonista.

Adiante, a bela mocinha deixa cair a pasta de documentos no chão, e baixa para pegá-las ao mesmo tempo que o baterista Sérgio (Rhener Freitas), quando os olhares se cruzam e ambos se percebem apaixonados. Num instante posterior, este mesmo sujeito, sempre descamisado, beija a namorada do irmão, na casa da família, apenas para provar ao outro que sua companheira “não presta”. Eles se abraçam e agradecem à dolorosa prova de fraternidade. Desmascarada, a perigosa menina foge do lar cristão.

O longa-metragem faz prova de um machismo e misoginia inconcebíveis no cinema brasileiro popular, em pleno ano de 2023. Mesmo comédias que buscam amplo apelo de público compreenderam a importância de empoderar, ainda que simbolicamente, as mulheres. Spinello as trata como tolas, aproveitadoras, mesquinhas, sovinas, manipuladoras, falsas. Elas existem em cena unicamente para se apaixonarem pelo quinteto, para serem traídas e depois retornarem aos braços dos companheiros infiéis, quando estes já ganharam bastante dinheiro.

A narrativa demonstra interesse nulo pela música em si, ou ainda pelo contexto socioeconômico capaz de celebrar letras tão provocadoras em rede nacional. As canções do grupo surgem por geração espontânea, numa sequência em que olham para um sabonete e criam imediatamente a letra de Sabão Crá-Crá, ou quando confessam o término de um relacionamento e disparam toda a composição de Chopis Centis. Hoje, estas letras teriam dificuldade de aceitação enquanto tais, porém o roteiro evita contextualizá-las ou questioná-las. Prefere se ater à nostalgia acrítica face a músicas muito queridas em sua época.

Adiante, a montagem intercala cenas emotivas envolvendo os familiares dos músicos, cuja função se resumia, até então, a olhar para a televisão e sorrir. Eles descobrem que terão uma casa grande, pedem desculpas por não acreditarem neles antes, afirmam se tratar dos melhores filhos possíveis. O excesso de sentimentalismo beira, uma vez mais, a paródia. O longa-metragem certamente busca o humor, porém o obtém nas cenas em que se pretendia mais sério.

Ao final, Mamonas Assassinas: O Filme celebra o dinheiro e a masculinidade, além da vitória da malandragem, do “dar um jeitinho”, de faça-como-puder. Ele sustenta tanto o julgamento moral ferrenho dos filmes religiosos quanto uma quantidade de homens descamisados e cenas de baixo-erotismo dignas de novelas exploitation. Spinello não sabe muito bem o que dizer, nem como refletir a partir de um percurso tão excepcional. Prefere somente celebrar um brasileirismo anacrônico, conservador, 27 anos após a morte da banda. Nasce velho, enquanto cinema e visão de mundo.

Mamonas Assassinas: O Filme (2023)
3
Nota 3/10

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