Eu Não Sou Tudo Aquilo que Quero Ser (2024)

Existencialismo fotográfico

título original
Ještě Nejsem, Kým Chci Být (2024)
país
República Tcheca, Eslováquia, Áustria
linguagem
Documentário
duração
90 minutos
direção
Klára Tasovská
com
Libuše Jarcovjákové
visto em
13º Olhar de Cinema — Festival Internacional de Curitiba

A premissa de um documentário a respeito da fotógrafa Libuše Jarcovjákové pode criar expectativas muito específicas. Se fosse um longa-metragem convencional da indústria, ou uma proposta das plataformas de streaming, provavelmente apresentaria uma sucessão de entrevistas intercaladas com materiais de arquivo, ressaltando o imenso talento da artista, além dos principais momentos de sua carreira. A protagonista receberia sua devida homenagem, por “merecer” um filme após tantas conquistas — o discurso da meritocracia cinematográfica retorna com frequência no caso das cinebiografias.

Felizmente, Eu Não Sou Tudo Aquilo que Quero Ser foge à linguagem tradicional, assim como à necessidade de hipervalorizar sua personagem principal. A cineasta Klára Tasovská efetua o projeto com sua protagonista, ao invés de sobre ela. A fotógrafa jamais se reduz a um objeto de estudo externo, tendo autonomia para determinar os rumos da narrativa e participar ativamente da maneira como sua vida será retratada. Surge uma inesperada horizontalidade entre criadora e criatura, ou, no caso, entre diretora e personagem.

A direção compreende a necessidade fundamental de dialogar com a linguagem adotada por Libuše — afinal, ambas são criadoras de imagens. Por isso, determina, enquanto ponto de partida, que a obra será narrada unicamente pelas fotografias da protagonista. Posto que a mulher registrou muitas décadas de sua vida, incluindo momentos íntimos, a proposta se sustenta. Duas criações de Libuše se fundem: as fotografias e os trechos do diário íntimo. 

Libuše não fotografa apenas por ofício ou obrigação, mas por encontrar neste gesto uma maneira de organizar emoções. O projeto permite refletir acerca das transformações na função social da fotografia.

Ora, nenhum dos dois materiais foi concebido para se tornar cinema, muito menos para coexistirem na forma de um discurso unívoco. A iniciativa consiste, em si própria, num gesto autoral, uma espécie de curadoria da jovem autora. Além disso, a solicitação à protagonista que releia passagens do diário, décadas após os fatos, e munida do devido distanciamento, favorece o clima fantasmático, distanciado. Começamos a história sabendo onde terminará, visto que a narrativa se inicia com a primeira grande exposição da artista, após cinquenta anos de espera.

Isso porque Libuše não foi considerada um gênio, um prodígio, nem marcou sua época. Aí reside outro centro de interesse na obra cinematográfica: a escolha de voltar o holofote a alguém que não foi reverenciado. Isso permite a descrição bastante frontal, e mesmo cruel, de seus fracassos, rejeições, e das duras palavras dos críticos dos anos 1980, para quem as fotografias dela eram bem feitas, porém sem um ponto de vista; ou então tecnicamente competentes, ainda que desprovidas de um discurso específico a respeito do que via. Quantos documentários sobre artistas se voltam àqueles que não tiveram sucesso durante a maior parte da vida? 

Tamanho distanciamento da hagiografia convencional permite às duas mulheres mergulharem por um domínio das sensações, sentimentos, impressões. Ao invés de narrar os fatos, a voz em off privilegia a solidão da fotógrafa durante os anos vivendo no Japão e na Alemanha; as dúvidas e dores relacionadas aos dois abortos; a descoberta das drogas e da sexualidade. Parece haver uma imensidade de fotografias para rechear, de maneira não-reiterativa, cada um destes períodos. A imagem dialoga com o som na chave da evocação livre: complementam-se sem se repetir.

Além de empregar o recurso da confissão, Tasovská desenha um rico universo sonoro, composto de ruídos e evocações de ambientação. Na ausência de captações imagéticas próprias, concebe a música das festas, o ritmo de articulação das fotografias (evocando a melancolia, o frenesi das festas, a insegurança entre mudanças de países), a intromissão de cores. Ela permite que as fotografias pisquem, se atropelem, constituam finalidades em si próprias, enquanto fontes de luz ou formas de abstração. Mesmo as fotografias “descartadas”, apresentando borrões ou flares, dão origem a danças luminosas de livre expressão.

O próprio fato de recombinar as imagens em still, retirando-as do contexto e da cronologia originais, constitui uma ousadia notável da diretora. Para quem encontra dificuldades em aplicar o conceito de autoria a filmes cujo autor não traz nenhuma filmagem própria, basta ver as potencialidades criativas da montagem e finalização. Libuše se presta ao diálogo sem jamais se impor à diretora. Pode-se falar numa espécie de tango entre ambas as mulheres, que interferem artisticamente no trabalho uma da outra até atingirem um denominador em comum.

Em termos de tom, Eu Não Sou Tudo Aquilo que Quero Ser pode soar monótono, excessivamente linear. De fato, a experiência não segue a lógica de antes e depois, de causa e consequência, tão comuns à estrutura biográfica. Nunca sabemos ao certo onde a diretora pretende conduzir sua narrativa, nem quando pretende interrompê-la. Qualquer previsibilidade desaparece diante das deambulações da fotógrafa, procurando novas sensações e vivências. A ausência de rumo desta juventude transparece no aspecto tão mambembe (em termos narrativos) quanto elegante (na combinação estética) do longa-metragem.

Acima de tudo, o documentário se concentra nesta relação fundamental da protagonista com o ato de registrar a si mesma e ao mundo. Libuše não fotografa apenas por ofício ou obrigação, mas por encontrar neste gesto uma maneira de organizar emoções. A única paixão permanente desta mulher, sem apego específico ao lar ou aos amigos, reside na fotografia. O elemento capaz de costurar as vivências muito distintas em Berlim, Tóquio e Praga se torna precisamente o ato de sacar a máquina e capturar o momento. A artista não sabe o que deseja para o futuro, porém, tem a certeza de querer fotografar.

De maneira consciente ou não, o projeto ainda permite refletir acerca das transformações na função social da fotografia. É curioso assistir ao filme durante nosso período de selfies, de autoexposição descontrolada em busca de atenção nas redes sociais. Décadas atrás, a protagonista já tinha o hábito de se fotografar, inclusive nua. No entanto, estes registros permaneceram no tempo, constituindo o mosaico de uma época, em seu contato com o corpo, o comunismo e o mercado das artes. 

Nos anos 1980 analisados pela narrativa, as fotografias consistiam numa seleção do olhar, quando se escolhia exatamente aquilo que desejava capturar, para então revelar, ampliar, e descobrir quais fotos serviam; quais interessavam pessoal ou artisticamente. Hoje, a fotografia se aproxima de uma compulsão, uma bulimia do olhar, um vício do gesto. Quantos de nós teremos, daqui a quarenta anos, as selfies tiradas hoje, os registros de festas, ou ainda as capturas erradas, borradas, de uma beleza involuntária?

Nossas imagens se tornaram descartáveis, superficiais e intercambiáveis. Tasovská nos relembra de um tempo em que a fotografia equivalia a um material de arquivo, uma comprovação histórica e fatual, com implicações políticas, inclusive, conforme Libuše relembra de seu encontro com a polícia. Não havia, então, deepfake, Photoshop, fake news — pelo menos, não da forma como conhecemos atualmente. Nossos tempos leves também se tornaram tempos de inconsequência. O longa-metragem efetua o retrato daqueles tempos em que a imagem portava peso, gravidade e consequência. 

Eu Não Sou Tudo Aquilo que Quero Ser (2024)
8
Nota 8/10

Zeen is a next generation WordPress theme. It’s powerful, beautifully designed and comes with everything you need to engage your visitors and increase conversions.