No fictício Colégio Ascensão, tradicional reduto dos adolescentes privilegiados do Rio de Janeiro, estuda-se muito pouco. Os alunos não aprendem, nem se dedicam de fato a múltiplas disciplinas. Em compensação, eles usam drogas, vendem drogas, engravidam, abortam, se espancam, se chantageiam, vazam a sex tape da colega, praticam bullying e racismo. Sofrem agressões classistas e demais preconceitos na sala de aula, nos corredores, na entrada, na saída.
Através deste longa-metragem, a diretora Clara Linhart planeja denunciar diversos problemas sociais, sublinhando-os no intuito de facilitar a compreensão do público infantojuvenil. Para tornar a jornada clara e didática, escolhe a figura de uma garota negra, Maria (Nubia Maurício), que integra o liceu prestigioso. Instantaneamente, será chamada de favelada, incapaz, e ridicularizada pela maneira de se expressar. De volta à comunidade onde mora, escuta tiros, se depara com crianças portando metralhadoras e precisa saltar cadáveres ensanguentados após um tiroteio.
O problema desta abordagem consiste na redução da complexidade sociopolítica. Em primeiro lugar, ela pressupõe um espectador ignorante, ou incapaz de compreender nuances de psicologia e configuração identitária. Em segundo lugar, estima que dilemas de gênero, classe e etnia podem ser tratados com a mesma ingenuidade multicolorida de Carrossel e Malhação, duas referências bastante próximas do universo desejado aqui.
O problema desta abordagem consiste na redução da complexidade sociopolítica. Os dilemas se solucionam com uma facilidade idealizada, ingênua.
Ora, existe uma responsabilidade em representar moradores do morro, jovens que engravidam, garotos da periferia expulsos da escola sem direito de defesa. No entanto, as ações soam inconsequentes, banais. Após sofrer uma injustiça, o melhor amigo de Maria apenas desaparece do caminho da menina. Enfrentando problemas em matemática, após anos de uma formação escolar deficiente, a protagonista decide simplesmente se mudar para a casa do amigo e pretendente, que lhe oferece um quarto por duas semanas para estudarem juntos — e também se apaixonarem, é claro.
Os dilemas sociais se solucionam com uma facilidade idealizada, ingênua. Triste por se ver sozinha em casa, a mãe escuta da filha que esta será a oportunidade perfeita de se divertir no samba. A amiga grávida representa mero anúncio do problema no horizonte, e depois, desaparece. Maria nunca consegue penetrar a bolha das amizades elitistas e brancas, até que, num passe de mágica, adquire uma aceitação bastante razoável. Nota-se a dificuldade em lidar com processos e passagem do tempo.
Em consequência, Eu Sou Maria adota uma aparência fabular, oposta ao naturalismo desejado. Há pessoas profundamente boas e outras muito malvadas; um diretor detestável ou uma colega inofensiva. A estrutura em moldes “Meninas Malvadas”, a configuração de panelinhas e a ansiedade pelas festas de 15 anos se filiam ao imaginário norte-americano mais do que àquele tipicamente brasileiro. A facilidade com que o irmãozinho é enviado à casa do pai, sem o consentimento da mãe, coroa a impressão de um filme mais interessado em inventar problemas do que em desenvolvê-los.
A estética adota procedimento igualmente pedagógico, sobretudo no que diz respeito aos sons. O desenho sonoro faz com que os adolescentes conversem num pátio repleto de pessoas, mas os diálogos estejam limpíssimos, desprovidos de barulhos ao redor, como se gravados num estúdio acusticamente isolado. Em outras palavras, eles vivem num universo-bolha. Na lan house da comunidade, os protagonistas possuem falas claríssimas, mas as pessoas ao redor aparentam somente mover a boca, sem sons, fingindo falar alguma coisa. Andando pelas ruas da favela, os passantes não emitem sons, mas os pingos de chuva são altíssimos. A transição brusca do silêncio à fala e à trilha sonora denota uma condução pouco sutil.
A música merece uma discussão à parte. Praticamente todas as cenas se iniciam com uma trilha sonora ambiente, avisando ao espectador se esta sequência é feliz, triste, tensa, preocupante. (Mais uma vez, não se acredita na capacidade do público de compreender o tom de uma cena sem tal auxílio). A estética televisiva é reforçada pelo medo do silêncio, precisando garantir que, apesar de citarem inúmeros problemas sociais, esta é uma obra leve, divertida, para ver sem medo. Falemos de problemas, porém sem deixar que contaminem o teor da aventura, por favor.
Ao final, resta uma visão estereotipada tanto da favela quanto das classes privilegiadas, tanto da escola quanto da família monoparental. Falas deterministas apontam para uma compreensão política questionável (o irmão mais novo, “zangado, está começando ir para o baile funk”). A inserção social de Maria por meio do amor romântico com um galã branco e rico tampouco favorece sua força ou conquista pessoal — ela será salva pelo homem gentil, praticamente um white savior precoce.
Ainda restam os diálogos posados, as atuações meio rígidas, as composições frontais e estáticas, com os atores posicionados no centro exato do enquadramento… Aqui, a pobreza e a riqueza passam pelo filtro caricatural do imaginário popular. Depois da constatação piedosa dos dilemas, cabe acreditar que todos possam se resolver mediante a boa vontade (a meritocracia) e o encontro de um homem (o amor romântico). Algumas obras progressistas conseguem dar um passo para frente, e dois passos para trás.