O cinema brasileiro encontrou formas novas de se aproveitar de suas canções populares. Além das tradicionais biografias de artistas, e da ficcionalização de personagens de Adoniran Barbosa em Saudosa Maloca, a canção Evidências é transformada num mantra e uma maldição para Marco Antônio (Fábio Porchat). Basta escutar os primeiros acordes para cair num transe que o leva de volta aos momentos de conflito do relacionamento com Laura (Sandy Leah), que o abandonou pouco antes do casamento.
Desta vez, a música adquire poderes mágicos. O longa-metragem sugere uma projeção que ultrapassa o saudosismo e as lembranças: o herói se vê literalmente transposto ao passado, na condição de fantasma despercebido pelo Marco real. Em chave terapêutica, tem a oportunidade de perceber os motivos que teriam levado à ruptura do relacionamento. Em outras palavras, ele não consegue alterar o passado (como de costume nas tramas sobre viagens no tempo), apenas tirar conclusões que o aperfeiçoem enquanto indivíduo no tempo presente — uma espécie de retorno do recalcado a fórceps.
Para além do realismo fantástico da premissa, o filme demonstra o intuito de se configurar enquanto ficção científica. Marco Antônio descobre a possibilidade, enquanto espectro, de entrar em seu corpo real do passado, e também percebe um campo de força impedindo-o de partir dos cenários de conflito. É uma pena que nenhum destes pressupostos se desenvolva: a limitação geográfica permanece no campo da curiosidade, e possessão do próprio corpo jamais oferece ao protagonista modos inesperados de ação.
Fábio Porchat e Evelyn Castro elevam todas as cenas em que aparecem. Sandy, por outro lado, transparece limitações em meio à ciranda tragicômica.
Logo, os criadores inserem características únicas nesta premissa mágica, apenas para dispensá-las em seguida. Quando a melhor amiga Júlia (Evelyn Castro) começa a fazer testes com o amigo, tocando míseros segundos de Evidências inúmeras vezes e testando versões distintas da música, para ver se o transe ainda funciona, os experimentos tampouco conduzem a descobertas inéditas capazes de ajudar Marco Antônio. A comédia dramática adoraria ser o Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças (2004) brasileiro, porém não demonstra interesse real pela traquitana possibilitando a viagem no tempo.
Sobram o amor e a promessa óbvia de reconciliação, além da construção da música de José Augusto e Paulo Sérgio Valle, na voz de Chitãozinho e Xororó, encarnando o verdadeiro hino nacional. A narrativa se abre com a música-tema cantada em inúmeros ritmos e gêneros, e depois será executada pelo menos 20 vezes ao longo da trama. Os criadores não criam suspense, nem expectativa quanto ao papel desta letra na história do casal, preferindo a saturação.
Mesmo na transição entre cenas, diferentes leituras instrumentais de Evidências entram em cena. Ela será entoada pelos personagens, escutada no celular, nas lojas, em vídeos de celular. É preciso ter paciência para a utilização da canção popular além do limite do desgaste. O diretor Pedro Antonio compreende o trunfo que possui em mãos a partir da iniciativa de fazer um filma para Evidências (mais do que sobre Evidências), e explora a melodia e a letra em todas as oportunidades possíveis.
Não se espanta que, no final, a solução apaziguadora encontrada pelo projeto consista em transformar a música em produto. Podemos pensar no próprio filme, é claro, porém os roteiristas preferem a criação de um aplicativo de celular capaz de descobrir quais pessoas estão escutando a exata música que ouvimos, sugerindo que a coincidência do gesto equivaleria a uma prova de amor. Depois de inúmeras provações afetivas conduzidas com maior ou menor comprometimento por parte dos autores (a questão do inventário do pai é dispensada como um não-conflito), a paz de espírito se encontra na possibilidade de faturar a partir da maldição. Sim, sofro, ainda entro em transe, pelo menos, ganho dinheiro por isso. Sinal dos tempos.
Felizmente, como de costume, Fábio Porchat e Evelyn Castro elevam todas as cenas em que aparecem. Ele ocasionalmente recorre aos gestos histriônicos, os braços esticados, a voz mais aguda, porém equilibra os cacoetes com uma dedicação sincera aos traumas psicológicos deste publicitário. O encontro entre os dois humoristas representa os pontos altos do longa-metragem, quando dois jogadores de níveis equivalentes entram em quadra, devolvendo ao outro possibilidades de interação com voz, corpo e expressões, na intenção de gerar o riso. Porchat e Castro são humoristas de primeiríssima linha.
Sandy, por outro lado, transparece limitações em meio à ciranda tragicômica. É clara sua ligação familiar e musical com Evidências, razão pela qual teria sido chamada ao filme. Ela começa a jornada cantando a música no karaokê, algo que, de certa maneira, exime o roteiro da responsabilidade de fazê-lo adiante. Já vimos que ela canta. Vamos seguir adiante. No entanto, ela nunca consegue corresponder aos inúmeros ganchos cômicos fornecidos por Porchat em cena. O ator parece atuar sozinho quando faz uma dança cômica na cozinha ou desempenha estripulias diante do pai da moça. Ela apenas observa e sorri.
O resultado procura funcionar na chave do contraste. O moço atrapalhado e frenético contra a moça comportada e séria; o rapaz ranzinza contra a namorada serena; o tipo imaturo contra a garota responsável e trabalhadora. Para além da noção de destino — desde a moeda lançada ao ar, no início, em câmera lenta e com o fundo desfocado, compreende-se que os dois estão fadados a permanecer juntos —, reforça-se a máxima popular de opostos que se atraem, ou se completam.
Qualquer um pode ser amado, mesmo você, homem comum, sem qualidades excepcionais nem defeitos profundos. Porchat encarna novamente o sujeito médio, numa busca constante que o difere amplamente dos outros humoristas masculinos em atividade — Leandro Hassum, Eduardo Sterblitch, Marcelo Adnet, Rodrigo Sant’Anna, para citar alguns. Em suas comédias e comédias dramáticas (basta lembrar O Palestrante e Entre Abelhas), visa encarnar o cidadão-geral, o indivíduo passível de identificação com qualquer um. Dentro da viabilidade utópica da proposta, ele se sai muito bem.
Ao final, Evidências do Amor cumpre razoavelmente a promessa de um filme descolado, jovem, antenado com os problemas da atualidade. Compreende a necessidade de escalar pessoas negras, ainda que encarnem a função tão comum de melhor-amigo-do-protagonista, ou namorado que obviamente não ficará com Laura por muito tempo. O projeto ainda condensa na colega de trabalho (a excelente Larissa Luz) a imagem da mulher negra-e-lésbica-e-nordestina que lhe isentaria de maior representatividade — afinal, todas as demandas estão contidas nela, correto?
Caberá aos próprios filmes imaginar uma diversidade real, concreta, conferindo função dramática autônoma a estas figuras. Não basta existirem para dar a réplica ao herói branco, hétero e cis, nem para dizerem que têm uma namorada nunca vista em cena. Precisamos de um comprometimento social mais firme. No entanto, Evidências do Amor busca se configurar enquanto filme consensual, moderninho sem soar progressista (afinal, o universo sertanejo dialoga diretamente com o público conservador); engraçado sem forças as piadas; romântico sem representar tesão nem sexo.
Trata-se de um filme de sorrisos, afagos e promessas de que a pessoa certa ainda há de voltar para você, mais cedo ou mais tarde. Por trás das cores quentes e neon, da montagem propícia aos tempos de Internet e da aparência despojada (Sandy usa o cabelo loiro descolorido; Fábio Porchat se mostra nu, quanta ousadia), resta um projeto agradavelmente retrô. Nada representaria melhor esta união do saudosismo com a vontade de parecer atual quanto as dezenas de releituras e revisões de Evidências. O filme se prova tão palatável e moderno quanto o hino sertanejo.