É interessante pensar que, caso fosse lançado no cinema 30 ou 40 anos atrás, este drama LGBTQIA+ seria provavelmente aclamado por críticos e pelo público. Afinal, ele contém todos os traços e valores que se costumava defender nas produções da época, enquanto forma de respeito à figura de homens gays. Em primeiro lugar, o drama sugere que gays devem ser respeitados porque sofrem. Amar em segredo é duro; ser perseguido por seu afeto deixa cicatrizes; precisar “manter as aparências” com relacionamentos heterossexuais de fachada constitui uma forma de violência. Pega leve com os gays, poxa, a vida deles já é miserável demais.
O segundo lugar viria justamente do ponto de vista: “a vida deles”. Segredos de Guerra tem como protagonistas dois homens homossexuais, no entanto, parece se dirigir ao público heterossexual, a quem se pede misericórdia e tolerância. Ele representa uma forma de bilhete informativo (“havia gays na época da guerra, inclusive no exército, e eles precisavam reprimir seus desejos”) vista de fora, com certa distância e recato. O olhar piedoso nunca se converte numa oportunidade de dar voz aos homens. Pelo contrário, valoriza-se o silêncio, a dificuldade de se expor, a saudade mantida em segredo.
Para o público gay, o longa-metragem resulta asséptico na representação de um amor gélido entre dois homens vistos como belos, musculosos e fortes, porém de rostos impassíveis, e expressando o mínimo possível de seu desejo sexual. As cenas de sexo são tão desconfortáveis, pelo posicionamento dos corpos, a escolha de ângulos e de montagem, que nem se aproximam de um coito verossímil. Os beijos são breves, já os olhares trocados à distância se multiplicam. É preferível mostrar o quanto escondem, o quanto represam dentro de si, estes pobres coitados. Nas raras oportunidades de extravasarem, é o diretor Peeter Rebane que se contém, numa abordagem no mínimo envergonhada do tesão entre dois homens.
Ao invés da libido, o drama oferece uma dezena de sequências românticas que abraçam clichês antigos da sensibilidade. Sergey Serebrennikov (Tom Prior) é descrito como delicado porque gosta de fotografar flores e escutar música clássica. Cada olhar entre o soldado e o tenente Roman Matvejev (Oleg Zagorodnii) é acompanhado de um dedilhado genérico ao piano. Os amantes admiram o céu, deitados na relva, enquanto citam Shakespeare e admiram as copas das árvores chacoalhando ao vento.
Segredos de Guerra se importa unicamente com o amor entre ambos, que serve de ponto de chegada e ponto de partida à narrativa. […] Shakespeare é citado inúmeras vezes porque talvez Rebane acredite estar dirigindo uma versão gay de Romeu e Julieta.
Mais do que isso, os encontros do casal transbordam de um lirismo antiquado, herdeiro da sensibilidade de uma Danielle Steel (“Eu tentei tanto esquecê-lo, mas não consigo!”). Os dedos acidentalmente se tocam durante a revelação de uma fotografia, quando percebem que se amam. Um dos dois, bêbado, é segurado pelo outro que o impede de cair, e a troca de olhares provoca faíscas de desejo. Sozinhos num galpão noturno, são iluminados por um azul profundo e exagerado. Surpreendidos no quarto, escondem-se sabe-se lá onde, sob o chão do banheiro. O diretor não teme os absurdos, os exageros, as convenções acessórias para uni-los e separá-los.
Isso inclui a presença de dois vilões — dois homens heterossexuais que tentam afastá-los pelo simples prazer de fazê-lo — e uma mulher doce e iludida, que se envolve afetivamente com os dois. Uma única cena aponta à possível exploração das cores, dos cenários e da estética para representar o sentimento amoroso, ao invés de apreendê-lo enquanto tal: o corpo de Sergey, de costas, fica ofuscado pela parede de um vermelho profundo, enquanto o som de passos indica a chegada progressiva do amante, fora de quadro. Ali existe tensão, sugestão através das formas e da dissociação entre som e imagem.
Infelizmente, nenhum outro momento se aproxima desta cena. Restam planos e contraplanos, juras de amor eterno, amantes que entram no trem um segundo antes de o veículo partir. Uma novela, enfim, no sentido depreciativo do termo. Tom Prior sabe interpretar o sujeito de olhos pidonchos e um mini sorriso contido na ponta dos lábios, como se saboreasse seu segredo. Já Oleg Zagorodnii e Diana Pozharskaya se mostram muito mais fracos, de corpo e fala engessada com os textos em língua estrangeira. As cenas de Luisa e Roman sozinhos, sobretudo no ambiente doméstico, resultam inertes.
Assim, nessa União Soviética onde todos falam inglês, nem sequer a guerra mencionada pelo título brasileiro se aprofunda. Os soldados acordam, se vestem e recebem ordens de superiores tirânicos. No entanto, a guerra em si permanece distante. Não se vê quem luta contra quem, em busca de qual objetivo, implicando em quais circunstâncias sociopolíticas. A batalha se reveste de uma atmosfera vaga de tensão e adversidade — eles poderiam ser funcionários de uma usina, ou dois trabalhadores do campo, sem que isso fizesse diferença significativa aos rumos da aventura emocional.
Isso porque Segredos de Guerra se importa unicamente com o amor entre ambos, que serve de ponto de chegada e ponto de partida à narrativa. Vão ficar juntos? Serão descobertos pelos superiores? Serão punidos pelo relacionamento escondido? Amar e ser amado são os dois únicos conflitos que ocupam o contexto de guerra. Famílias, amizades, nações bombardeadas, crise financeira, as aspirações artísticas de Sergey são deixados em segundo plano, e convenientemente esquecidos quando o casal se encontra junto, em cena. Shakespeare é citado inúmeras vezes porque talvez Rebane acredite estar dirigindo uma versão gay de Romeu e Julieta.
Mesmo o título no Brasil soa apartado do século XXI. Antes, era comum batizar filmes gays com “segredo”, “delicado” e outros eufemismos para indicar a homossexualidade sem chocar a sensibilidade hétero. “Ser ou não ser, eis a questão”, repete Sergey, sozinho e em voz alta, referindo-se evidentemente à própria sexualidade (ser ou não ser gay). Este aspecto resume o teor amargo deste drama: a imagem constrangida de uma sexualidade que precisa ser anunciada, mas por favor, nunca explicitada, mostrada, sentida de fato. T tudo bem que eles sejam gays, mas de aparência padronizada, que não transem, não gozem, não sangrem. Que versem uma pequena lágrima, educadamente, e jamais enfrentem o status quo. Que restem em sua condição de marginais, mártires do amor proibido, sacrificados pela tragédia de sua impossível emancipação social.
O aspecto conformista, espécie de aceitação da dor enquanto condição inerente aos gays (“eles sofrem assim mesmo, fazer o quê?”) incomoda bastante nesta produção. O cinema de nossos tempos já encontrou maneiras mais potentes, incisivas, esteticamente provocadoras e narrativamente ousadas e evocar o amor entre dois homens sem medo de ferir o pudor da família tradicional. Vale pesquisar as obras de François Ozon, Pedro Almodóvar, Rainer Werner Fassbinder, Bruce la Bruce, John Waters, Eliza Hittman, Marcelo Caetano, Daniel Nolasco, Érica Sarmet, Diego Paulino e tantos outros. O cinema LGBTQIA+ já superou, há muitas décadas, a romantização da homofobia.