Future Brilliant (2023)

Dueto

título original (ano)
Future Brilliant (2023)
país
Brasil
linguagem
Documentário
duração
97 minutos
direção
Abílio Dias
Com
Gisele Dias, Abílio Dias, Nilson Dias, Maria Célia Dias, Gabriela Prado, Darlene Denardi
visto em
57º Festival de Brasília (2024)

Ao ler a sinopse oficial, indicando que o diretor Abílio Dias efetua um documentário sobre a própria irmã, incluindo os pais como personagens, o espectador interessado no cinema brasileiro independente dos últimos 20 anos pode se perguntar: mais um filme assim? Até quando os jovens autores vão insistir nas crônicas de suas famílias, colocando-se como personagens de modo um tanto vaidoso, ainda que supostamente humilde ou despretensioso? O que este formato ainda teria a oferecer, que já não tenha sido utilizado em duas dúzias de (bons) filmes autobiográficos?

A sessão de Future Brilliant, felizmente, dissipa qualquer receio de redundância e egocentrismo, calando sem dificuldade os preconceitos de alguns (a exemplo do autor desta crítica). O filme é excepcional. Possui um rigor na construção da imagem, uma ética profissional na filmagem do outro, e um senso de organização de ideias que surpreende, em se tratando do primeiro longa-metragem do autor. Diversos cineastas passam uma carreira inteira filmando sem chegarem a um resultado de tamanha precisão e humanismo, costurando de modo tão impecável a forma ao conteúdo.

Vamos por partes. O primeiro elemento que salta aos olhos durante a experiência não são os personagens, mas o controle rígido das composições. Dias e o diretor de fotografia Eduardo Kissajikian trabalham a partir de um formato de tela mais próximo do quadrado. Optam por planos fixos, longos, com a câmera posicionada em frente aos personagens, esperando pacientemente pelas interações valiosas que se possam produzir ali. A câmera não se ajusta à direita e esquerda conforme os corpos se movimentam no espaço, pelo contrário, mantém o enquadramento enquanto pressuposto inicial. 

Um dos gestos mais belos deste projeto consiste em olhar para pessoas com deficiência enquanto indivíduos voltados ao futuro, ao invés de limitados a um eterno presente.

Além disso, o cineasta demonstra o prazer de criar quadros-dentro-do-quadro, ou segmentações no interior de uma imagem. Utiliza as batentes de portas e janelas, assim como moldura de quadros e cabeceiras, para efetuar divisões orgânicas em cada olhar. Ajusta-se precisamente à linha da moldura do quadro, ou aos terços exatos do enquadramento. (Este deve ser um filme bastante reconfortante para pessoas com TOC). Mesmo quando movimenta a câmera, em lentos zoom-ins em direção a uma lâmpada, ou numa pan do solo ao céu, efetua-o com a precisão de quem maneja um objeto delicado.

Tamanho formalismo poderia soar estéril, avesso aos sentimentos. Nada disso. O quadro, enquanto elemento de contenção e seleção, serve a se focar ao máximo em Gisele Dias, jovem com dificuldades motoras e cognitivas, e também em deixar de fora os pais, abordados com pudor. Este é um filme-retrato, que prefere o rosto e corpo da irmã aos acontecimentos ao redor. A disciplina funciona tanto para a linguagem cinematográfica quanto para a protagonista, que vai a sessões de fisioterapia e estuda inglês, visando ter um brilliant future — ou um “future brilliant”, como ela diz, antes de ser corrigida pela professora.

É fundamental para o cineasta que sua irmã seja percebida enquanto pessoa capaz, movida por ambições profissionais e amorosas. Ela deseja fazer uma pós-gradução, e pondera a respeito do namorado que pretende encontrar. Demonstra plena consciência de que o companheiro precisaria compreender suas necessidades, e aceitá-la do jeito que é. Gisele está presa a uma cadeira de rodas, dependente de cuidados familiares, porém, apresenta impecável lucidez quanto ao seu estado, além de uma obstinação saudável e natural em projetar seu futuro. 

Um dos gestos mais belos deste projeto consiste em olhar para pessoas com deficiência enquanto indivíduos voltados ao futuro, ao invés de limitados a um eterno presente. Assim, foge a todas as armadilhas frequentes: o olhar piedoso, a infantilização do PCD, a exploração da miséria, o espetáculo do corpo diferente da média, a instrumentalização da deficiência enquanto exemplo de causa (“Veja como é a vida dos PCDs!”). Gisele não se torna uma guerreira, uma mártir, nem um exemplo de superação. Sua integridade e subjetividade vêm em primeiro lugar.

Trata-se de uma mulher de classe média, com condições de ir ao médico, e recebendo toda a ajuda necessária. Sua condição está bem estabelecida no núcleo familiar, por isso, não causa surpresas ou comoção em ninguém. A deficiência se torna ponto de partida — nunca um meio, muito menos finalidade. Dias encontra um precioso e raro meio-termo no posicionamento da câmera, para estar perto o bastante sem soar invasivo; e distante o suficiente, sem espiar a irmã de modo voyeurista. Em consequência, elabora um filme com ela, junto dela, ao invés de sobre ela. O ponto de vista se horizontaliza.

A propósito de estar juntos, Future Brilliant pode ser compreendido como uma espécie de dueto entre irmão e irmã. Ambos discutem seus casos amorosos. A melancolia de Abílio, ciente de que talvez nunca se torne um cineasta reconhecido, aproxima-se das reflexões de Gisele, receosa de não seguir adiante com os estudos de língua. Enxergam-se um no outro. Passam tardes lado a lado, sem real ocupação, no quarto e no sofá. Estudam línguas juntos, e analisam letras de músicas americanas, palavra a palavra. O enquadramento espera, observa — nós, espectadores, somos convidados a participar da reunião, na condição de um vizinho ou amigo íntimo.

(Atenção: pequeno spoiler a seguir)

A música culmina na escolha do desfecho — uma das sequências mais preciosas e comoventes do cinema brasileiro recente. O estudo de All Throught the Night, de Jules Shear, evolui para uma proposta de escutar a música, na voz de Cindy Lauper e, depois, cantá-la. Mas como cantaria a mulher com dificuldade de pronunciar as palavras? Afinal, quem tem o direito de cantar? Existe uma maneira certa de cantar, de se comunicar, de estar no mundo? Vencida a reticência inicial, cantam. A câmera a observa com a mesma cumplicidade de antes. 

Neste momento, passa-se da teoria à prática, da disposição em ajudar Gisele ao movimento de aprender com Gisele, em seu ritmo. A câmera rígida e seus enquadramentos impecáveis refletem a maneira como os sentimentos podem ser aliados da forma: o formato quadrado, fechado no rosto que canta e no sorriso de satisfação ao final, atinge um equilíbrio ideal entre a contemplação e a intervenção, entre a apreensão do real e sua representação. 

O futuro de Gisele, assim como suas capacidades, estão estampados ali, junto de Abílio e de Cindy Lauper. Depois disso, o filme se encerra, é claro — o que mais poderia dizer depois de um momento deste? Na sala de cinema, alguns espectadores fungavam aqui e acolá — sim, o filme se mostra profundamente emotivo, mas pela alegria, ao invés da dor ou da tristeza. Por fim, resta o interesse profundo pelos próximos trabalhos de Abílio Dias, com seu modo tão especial de observar o mundo. Quanto a Gisele, esta futura professora de inglês dificilmente poderia ter recebido melhor homenagem.

Future Brilliant (2023)
10
Nota 10/10

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