Ao ler a sinopse oficial, indicando que o diretor Abílio Dias efetua um documentário sobre a própria irmã, incluindo os pais como personagens, o espectador interessado no cinema brasileiro independente dos últimos 20 anos pode se perguntar: mais um filme assim? Até quando os jovens autores vão insistir nas crônicas de suas famílias, colocando-se como personagens de modo um tanto vaidoso, ainda que supostamente humilde ou despretensioso? O que este formato ainda teria a oferecer, que já não tenha sido utilizado em duas dúzias de (bons) filmes autobiográficos?
A sessão de Future Brilliant, felizmente, dissipa qualquer receio de redundância e egocentrismo, calando sem dificuldade os preconceitos de alguns (a exemplo do autor desta crítica). O filme é excepcional. Possui um rigor na construção da imagem, uma ética profissional na filmagem do outro, e um senso de organização de ideias que surpreende, em se tratando do primeiro longa-metragem do autor. Diversos cineastas passam uma carreira inteira filmando sem chegarem a um resultado de tamanha precisão e humanismo, costurando de modo tão impecável a forma ao conteúdo.
Vamos por partes. O primeiro elemento que salta aos olhos durante a experiência não são os personagens, mas o controle rígido das composições. Dias e o diretor de fotografia Eduardo Kissajikian trabalham a partir de um formato de tela mais próximo do quadrado. Optam por planos fixos, longos, com a câmera posicionada em frente aos personagens, esperando pacientemente pelas interações valiosas que se possam produzir ali. A câmera não se ajusta à direita e esquerda conforme os corpos se movimentam no espaço, pelo contrário, mantém o enquadramento enquanto pressuposto inicial.
Um dos gestos mais belos deste projeto consiste em olhar para pessoas com deficiência enquanto indivíduos voltados ao futuro, ao invés de limitados a um eterno presente.
Além disso, o cineasta demonstra o prazer de criar quadros-dentro-do-quadro, ou segmentações no interior de uma imagem. Utiliza as batentes de portas e janelas, assim como moldura de quadros e cabeceiras, para efetuar divisões orgânicas em cada olhar. Ajusta-se precisamente à linha da moldura do quadro, ou aos terços exatos do enquadramento. (Este deve ser um filme bastante reconfortante para pessoas com TOC). Mesmo quando movimenta a câmera, em lentos zoom-ins em direção a uma lâmpada, ou numa pan do solo ao céu, efetua-o com a precisão de quem maneja um objeto delicado.
Tamanho formalismo poderia soar estéril, avesso aos sentimentos. Nada disso. O quadro, enquanto elemento de contenção e seleção, serve a se focar ao máximo em Gisele Dias, jovem com dificuldades motoras e cognitivas, e também em deixar de fora os pais, abordados com pudor. Este é um filme-retrato, que prefere o rosto e corpo da irmã aos acontecimentos ao redor. A disciplina funciona tanto para a linguagem cinematográfica quanto para a protagonista, que vai a sessões de fisioterapia e estuda inglês, visando ter um brilliant future — ou um “future brilliant”, como ela diz, antes de ser corrigida pela professora.
É fundamental para o cineasta que sua irmã seja percebida enquanto pessoa capaz, movida por ambições profissionais e amorosas. Ela deseja fazer uma pós-gradução, e pondera a respeito do namorado que pretende encontrar. Demonstra plena consciência de que o companheiro precisaria compreender suas necessidades, e aceitá-la do jeito que é. Gisele está presa a uma cadeira de rodas, dependente de cuidados familiares, porém, apresenta impecável lucidez quanto ao seu estado, além de uma obstinação saudável e natural em projetar seu futuro.
Um dos gestos mais belos deste projeto consiste em olhar para pessoas com deficiência enquanto indivíduos voltados ao futuro, ao invés de limitados a um eterno presente. Assim, foge a todas as armadilhas frequentes: o olhar piedoso, a infantilização do PCD, a exploração da miséria, o espetáculo do corpo diferente da média, a instrumentalização da deficiência enquanto exemplo de causa (“Veja como é a vida dos PCDs!”). Gisele não se torna uma guerreira, uma mártir, nem um exemplo de superação. Sua integridade e subjetividade vêm em primeiro lugar.
Trata-se de uma mulher de classe média, com condições de ir ao médico, e recebendo toda a ajuda necessária. Sua condição está bem estabelecida no núcleo familiar, por isso, não causa surpresas ou comoção em ninguém. A deficiência se torna ponto de partida — nunca um meio, muito menos finalidade. Dias encontra um precioso e raro meio-termo no posicionamento da câmera, para estar perto o bastante sem soar invasivo; e distante o suficiente, sem espiar a irmã de modo voyeurista. Em consequência, elabora um filme com ela, junto dela, ao invés de sobre ela. O ponto de vista se horizontaliza.
A propósito de estar juntos, Future Brilliant pode ser compreendido como uma espécie de dueto entre irmão e irmã. Ambos discutem seus casos amorosos. A melancolia de Abílio, ciente de que talvez nunca se torne um cineasta reconhecido, aproxima-se das reflexões de Gisele, receosa de não seguir adiante com os estudos de língua. Enxergam-se um no outro. Passam tardes lado a lado, sem real ocupação, no quarto e no sofá. Estudam línguas juntos, e analisam letras de músicas americanas, palavra a palavra. O enquadramento espera, observa — nós, espectadores, somos convidados a participar da reunião, na condição de um vizinho ou amigo íntimo.
(Atenção: pequeno spoiler a seguir)
A música culmina na escolha do desfecho — uma das sequências mais preciosas e comoventes do cinema brasileiro recente. O estudo de All Throught the Night, de Jules Shear, evolui para uma proposta de escutar a música, na voz de Cindy Lauper e, depois, cantá-la. Mas como cantaria a mulher com dificuldade de pronunciar as palavras? Afinal, quem tem o direito de cantar? Existe uma maneira certa de cantar, de se comunicar, de estar no mundo? Vencida a reticência inicial, cantam. A câmera a observa com a mesma cumplicidade de antes.
Neste momento, passa-se da teoria à prática, da disposição em ajudar Gisele ao movimento de aprender com Gisele, em seu ritmo. A câmera rígida e seus enquadramentos impecáveis refletem a maneira como os sentimentos podem ser aliados da forma: o formato quadrado, fechado no rosto que canta e no sorriso de satisfação ao final, atinge um equilíbrio ideal entre a contemplação e a intervenção, entre a apreensão do real e sua representação.
O futuro de Gisele, assim como suas capacidades, estão estampados ali, junto de Abílio e de Cindy Lauper. Depois disso, o filme se encerra, é claro — o que mais poderia dizer depois de um momento deste? Na sala de cinema, alguns espectadores fungavam aqui e acolá — sim, o filme se mostra profundamente emotivo, mas pela alegria, ao invés da dor ou da tristeza. Por fim, resta o interesse profundo pelos próximos trabalhos de Abílio Dias, com seu modo tão especial de observar o mundo. Quanto a Gisele, esta futura professora de inglês dificilmente poderia ter recebido melhor homenagem.