A primeira cena se concentra numa balada gay, onde diversas drag queens se apresentam ao público e recebem notas dos jurados. Em um único plano, fixo e distante (vide abaixo), observamos a multidão, o palco, o apresentador, os avaliadores. O local parece fervilhar de energia e interações. Esta apresentação serve de contraponto narrativo, e resumo estético, do longa-metragem na totalidade: em seguida, todas as imagens seguem uma linguagem semelhante, enquanto a vivacidade das multidões se esvai.
O procedimento gera um resultado hipnótico. Gamodi jamais explica quem são seus personagens, nem por qual motivo se encontram num gigantesco prédio abandonado, vivendo entre os escombros. Há pouquíssimos diálogos. A boate jamais retorna, muito menos as multidões. O lado B de tamanha alegria inicial se encontra na solidão dos três ou quatro protagonistas, abandonados à própria sorte, sobrevivendo como podem no edifício insalubre. Com a chegada da pandemia, nem sequer podem sair de “casa”.
Logo, encontram-se trancados num não-lugar; fechados num espaço aberto, sem janelas nem portas; mantendo o “distanciamento social” naturalmente, por não terem muito com quem conviver. O cineasta russo Felix Kalmenson converte este espaço-personagem numa faísca que leva os protagonistas à beira da fantasia, da ficção científica, reforçada pela presença de uma fumaça tão lânguida quanto assustadora. Se a arte drag consiste numa suspensão do real rumo à imaginação, o prédio nos conduz então ao submundo distópico.
A exemplo das drag queens, o prédio abandonado também se veste e desveste, muda de cores e de aparência. Quando ninguém mais o olha, retorna à marginalidade e à precariedade.
Uma cena representa com fino senso de ironia este avesso do espetáculo: enquanto o editor trabalha no material bruto de um programa de televisão comandado por Miss Shally (o nome drag de Victor Shally), o próprio artista esquenta um macarrão instantâneo barato. As costas estão viradas à tela, demonstrando desinteresse pela própria voz. Ele lava os pés na pia, arrasta-se sem vontade por corredores esvaziados. A solidão se reflete na utilização primorosa da geografia, sempre muito mais ampla e vasta que os corpos, espremendo-os, tornando-os pequenos, perdidos, quase desimportantes entre vigas e paredes.
A construção de planos, iluminação e direção de arte constitui um espetáculo à parte. O autor privilegia os quadros sempre fixos, abertos e longos. Enquanto algum morador conversa ou se desloca num canto ínfimo da imagem, percebemos o vazio, a escuridão e os entulhos ao redor. Uma pessoa constrói seu próprio quarto num andar de sua escolha. A outra monta um lustre improvisado, erguido ao teto com a ajuda de cordas. O local não pare de se reinventar, cena após cena. Já o olhar do espectador tem muito a percorrer, de um lado ao outro, da frente ao fundo, de cima a baixo.
Ao mesmo tempo, os heróis e heroínas estão distantes de meros modelos, posando nos enquadramentos desejados pelo diretor. Existe um humanismo delicado, transmitido ao longo da narrativa singela, apesar da ausência de falas (ou talvez por causa delas). Compreendemos que Shally provém de uma família privilegiada, embora tenha cortado os laços com a mãe de vontade própria. Em algum andar do edifício, encena-se a coroação de um morador. No meio da noite, pelas frestas que luz que chegam dos prédios vizinhos, percebe-se o encontro amoroso entre duas sombras de identidade indefinida.
Gamodi (título decorrente de uma canção clássica ouvida pelos personagens) nunca transforma estes personagens LGBTQIA+ em vítimas, nem mártires de uma causa. A exclusão devido à sexualidade e ao gênero passa a espelhar aquela provocada de maneira mais recente pela Covid-19. Que diferença faz, na vida de Shally, Luka e Maqsime, a impossibilidade de se encontrarem socialmente, posto que já viviam apartados dos centros urbanos? A protagonista decora a sua casa com tapetes encontrados ao acaso, além de vasos de flores e um berço vazio. O prédio, ainda que empoeirado, possui televisores funcionando e refletindo imagens de buquês, além de lençóis floridos sobre os colchões jogados no chão. Há beleza, cuidado e interesse no abandono.
De certo modo, a escolha deste prédio serve de metáfora perfeita aos protagonistas e à sua sexualidade. Trata-se de locais e pessoas imponentes, ainda que segregados. A câmera filma as vigas, andares e a própria estrutura do edifício com um interesse geométrico e espacial preciosíssimo, através de plongées, contraplongées, chamando atenção à mínima luz provinda de algum andar, ou à iluminação refletida das construções vizinhas. A exemplo das drags, a construção também se veste e desveste, muda de cores e de aparência. Quando ninguém mais a olha, retorna à marginalidade e à precariedade.
O resultado, árido e preciosamente filmado, remete às obras de Apichatpong Weerasethakul ou Tsai Ming-Liang, dois diretores que também combinam planos fixos, paixão pelo espaço e pela sexualidade de seus personagens marginais. O drama fantástico sustenta um interessante senso de absurdo, traduzido em seu máximo potencial na cena de conclusão, espécie de videoclipe de Miss Shally, expressando suas cores e sua beleza apenas aos olhos do público.
Kalmenson encontra, na metáfora da impossibilidade da apresentação artística real, uma fuga otimista e carinhosa a estes personagens enclausurados. Comprova, assim, o ponto de vista solidário, e aliado às performances kitsch e rigorosas de suas protagonistas. Cinema autoral e arte drag unem-se numa única forma de expressão.