Uma mulher começa a suspeitar que os vizinhos estejam interessados em seu bebê. Há indícios de que o rebento possa ser o filho do demônio, razão pela qual a comunidade de idosos cobiça esta criança especial. Paira a possibilidade de que o próprio pai da criança esteja participando deste pacto macabro, em troca de uma ascensão em sua carreira artística. Mas talvez a mãe esteja delirando, e tudo não passe de paranoia. Esta é a premissa de Gêmeo Maligno (2022), mas também do clássico O Bebê de Rosemary (1968).
Para descobrir o possível aspecto demoníaco do filho, a mãe recorre a fotografias do menino, capazes de comprovar se existe um espectro ao seu lado. Assim, o garoto é fotografado num parque, com seu gorro e roupas de inverno — exatamente como em A Profecia (1976). A perda de um dos filhos gêmeos num acidente faz com que a identidade da dupla seja questionada, e que as crianças possivelmente se virem contra a mãe. Os meninos existem de fato? Teriam trocado de identidade? A dúvida paira na produção de 2022, e constituía o ponto de partida de Boa Noite, Mamãe (2014).
Rachel (Teresa Palmer) começa a sofrer com o comportamento atípico dos moradores deste vilarejo ao norte do globo, onde os habitantes pagãos efetuam rituais estranhos. Estas pessoas seguram a mulher contra a sua força, cobrem-na com flores e efetuam sacrifícios sangrentos, em estilo muito próximo ao de Midsommar: O Mal Não Espera à Noite (2019). É difícil perceber algum traço de originalidade nesta iniciativa finlandesa, que soa como uma colagem nada disfarçada de clássicos e obras contemporâneas de horror. Nenhuma cena transpira ousadia ou criatividade: os autores bebem diretamente em fontes conhecidas.
Isso não significa que a produção seja mal feita, pelo contrário. Existe notável cuidado por parte da direção de fotografia, desde a iluminação da casa até os enquadramentos e o elegante uso da janela em scope para enquadrar os espaços. O diretor Taneli Mustonen sabe trabalhar com a contemplação, os espaços vazios, as sugestões de alguma presença indesejada em grandes planícies vazias, ou nos cômodos obscuros do casarão. A presença de objetos comuns, a exemplo de duas camas em paralelo, uma vela ou um espelho, adquirem um caráter sinistro graças ao trabalho de ambientação.
A heroína se vê presa a uma longuíssima tradição no cinema de horror que consiste em transformar as mulheres em figuras loucas, histéricas, incontroláveis, enquanto os homens consistem na razão e na solução dos problemas.
Além disso, Teresa Palmer é uma ótima atriz — boa demais para um projeto deste porte, inclusive. O rosto bastante expressivo navega entre a indignação, o medo, a dor, a culpa e o ódio profundo em período de luto, numa única cena. Ela apresenta uma dignidade e complexidade ímpares à mulher que, nas mãos de outras intérpretes, se converteria em mera vítima dos ataques alheios. A jovem australiana apresenta nuances na voz, oferece pausas inesperadas aos diálogos e modifica a postura corporal de acordo com as situações. É admirável ver o que ela pode oferecer diante de um material tão simples.
Atenção: possíveis spoilers abaixo.
No entanto, a heroína se vê presa a uma longuíssima tradição no cinema de horror que consiste em transformar as mulheres em figuras loucas, histéricas, incontroláveis, enquanto os homens ilustram a razão e a solução dos problemas. O Bebê de Rosemary representa uma pedra inicial neste processo, com uma diferença importante: na obra de Polanski, o ponto de vista permanece junto à mulher, acompanhando seus sentimentos mais íntimos e garantindo que, no final, o inferno seja os outros. Ora, Gêmeo Maligno não demora a sugerir que Rachel está de fato louca, e que o marido, visto como possível ameaça, estava carregado de pura bondade.
Esta imagem da mulher hormonal se reproduziu a seguir nas histórias de possessão, onde uma garotinha virginal tem seu corpo tomado por uma força do além (de voz e aspecto masculinos), o que reforça a conotação de violência sexual. A pobre grita e esperneia, até um padre mais velho, típica figura paterna, proferir algumas frases que expulsem o diabo e coloquem a menina de volta ao lugar casto de onde nunca deveria ter saído. A aparência angelical e as camisolas brancas nas vítimas de possessões servem a reforçar tanto a infantilidade quanto a virgindade.
Assim, cabe aos homens controlar, proteger e manter a pureza das mulheres. São elas que enxergam vultos, supostamente por serem mais sensíveis. Serão elas que perderão a cabeça após a morte do filho, ou que lutarão com mais força para protegê-lo, em oposição aos pais tranquilos que aceitam as tragédias e seguem adiante. A existência do mítico “instinto materno” faz com que os corpos e identidades femininas sejam vistos como problemáticos, irascíveis, naturalmente propensos às tarefas domésticas e ao cuidado das crianças. Talvez por se dedicarem aos bebês, não cuidem de si próprias — esta tarefa compete aos homens.
Rachel consiste no ápice da mulher enlouquecida. Ela tem pesadelos com caixões se mexendo, enquanto o marido dorme noites sossegadas. A forasteira trava amizade somente com outra mulher nesta cidade finlandesa — justamente a louca do vilarejo. A fotógrafa acredita estar sendo perseguida, amarrada, forçada a integrar sinistras cerimônias noturnas. Ela grita com o filho sem motivo, perde-o em mais de uma oportunidade. No acidente de carro, o único rosto visto nas imagens é o dela — gritando, claro. Em meio aos novos vizinhos, torna-se raivosa com o marido, e sofre de um ataque histérico no chão, enquanto todos observam.
Ora, rumo ao final, o filme dará razão ao resto do mundo contra a mulher incapaz de efetuar o luto. Ela será uma vítima por quem o projeto se apieda, contanto que na condição de um julgador externo e moralizante. Nutre-se certo pesar por Rachel, como quem lamenta pelas pessoas enlouquecidas em hospitais psiquiátricos, com certo desdém ou repulsa pela degradante situação alheia. Mesmo a compreensão de seu estado psíquico surge num momento abrupto, fácil demais: a narrativa sustenta a dúvida quanto à realidade desta mulher, até estimar que já ocultou o segredo o suficiente, revelando ao espectador o que aconteceu de fato.
Neste instante, a verdade é explicada letra por letra, sem qualquer esforço de descoberta por parte da mulher. Nem mesmo este mérito ela terá por conta própria: o homem se encarrega de colocá-la nos eixos, explicar aquilo que a esposa seria incapaz de compreender sozinha. Gaslighting e mansplaining andam de mãos dadas, no caso. Palmer defende esta mulher com um talento impressionante, mas este terror insiste em depreciá-la, passo a passo. Mães sofrem, mulheres se desequilibram, como já havia demonstrado o sádico Mãe! (2017), de Darren Aronofsky.
Aqui, podemos falar de um filme misógino, ao invés de um filme sobre a misoginia — duas coisas radicalmente diferentes. Gêmeo Maligno ainda se enfraquece pela sucessão inesgotável de clichês imagéticos: a visão aérea do carro solitário dirigindo entre a floresta; o plano noturno do casarão coberto por uma quantidade absurda de gelo seco; o casal em crise que se depara com uma nítida mansão mal-assombrada e se exclama “Vamos ser muito felizes aqui!”; a portinha fechada no sótão levando a locais escuros e perigosos. Caso se assumisse como homenagem, paródia ou colagem de filmes alheios, o resultado seria mais interessante. Entretanto, Mustonen parece acreditar, em sua seriedade, que está construindo uma bela obra original.