Gêmeo Maligno (2022)

O gaslighting no cinema de terror

título original (ano)
The Twin (2022)
país
Finlândia
gênero
Terror, Suspense
duração
109 minutos
direção
Taneli Mustonen
elenco
Teresa Palmer, Steve Cree, Barbara Marten, Tristan Ruggeri, Andres Dvinjaninov, Nick Connor, Tiiu Uibo, Raivo Trass, Liisi Org, Kert Kurist, Raul Talmar
visto em
Cinemas

Uma mulher começa a suspeitar que os vizinhos estejam interessados em seu bebê. Há indícios de que o rebento possa ser o filho do demônio, razão pela qual a comunidade de idosos cobiça esta criança especial. Paira a possibilidade de que o próprio pai da criança esteja participando deste pacto macabro, em troca de uma ascensão em sua carreira artística. Mas talvez a mãe esteja delirando, e tudo não passe de paranoia. Esta é a premissa de Gêmeo Maligno (2022), mas também do clássico O Bebê de Rosemary (1968).

Para descobrir o possível aspecto demoníaco do filho, a mãe recorre a fotografias do menino, capazes de comprovar se existe um espectro ao seu lado. Assim, o garoto é fotografado num parque, com seu gorro e roupas de inverno — exatamente como em A Profecia (1976). A perda de um dos filhos gêmeos num acidente faz com que a identidade da dupla seja questionada, e que as crianças possivelmente se virem contra a mãe. Os meninos existem de fato? Teriam trocado de identidade? A dúvida paira na produção de 2022, e constituía o ponto de partida de Boa Noite, Mamãe (2014).

Rachel (Teresa Palmer) começa a sofrer com o comportamento atípico dos moradores deste vilarejo ao norte do globo, onde os habitantes pagãos efetuam rituais estranhos. Estas pessoas seguram a mulher contra a sua força, cobrem-na com flores e efetuam sacrifícios sangrentos, em estilo muito próximo ao de Midsommar: O Mal Não Espera à Noite (2019). É difícil perceber algum traço de originalidade nesta iniciativa finlandesa, que soa como uma colagem nada disfarçada de clássicos e obras contemporâneas de horror. Nenhuma cena transpira ousadia ou criatividade: os autores bebem diretamente em fontes conhecidas.

Isso não significa que a produção seja mal feita, pelo contrário. Existe notável cuidado por parte da direção de fotografia, desde a iluminação da casa até os enquadramentos e o elegante uso da janela em scope para enquadrar os espaços. O diretor Taneli Mustonen sabe trabalhar com a contemplação, os espaços vazios, as sugestões de alguma presença indesejada em grandes planícies vazias, ou nos cômodos obscuros do casarão. A presença de objetos comuns, a exemplo de duas camas em paralelo, uma vela ou um espelho, adquirem um caráter sinistro graças ao trabalho de ambientação.

A heroína se vê presa a uma longuíssima tradição no cinema de horror que consiste em transformar as mulheres em figuras loucas, histéricas, incontroláveis, enquanto os homens consistem na razão e na solução dos problemas.

Além disso, Teresa Palmer é uma ótima atriz — boa demais para um projeto deste porte, inclusive. O rosto bastante expressivo navega entre a indignação, o medo, a dor, a culpa e o ódio profundo em período de luto, numa única cena. Ela apresenta uma dignidade e complexidade ímpares à mulher que, nas mãos de outras intérpretes, se converteria em mera vítima dos ataques alheios. A jovem australiana apresenta nuances na voz, oferece pausas inesperadas aos diálogos e modifica a postura corporal de acordo com as situações. É admirável ver o que ela pode oferecer diante de um material tão simples.

Atenção: possíveis spoilers abaixo.

No entanto, a heroína se vê presa a uma longuíssima tradição no cinema de horror que consiste em transformar as mulheres em figuras loucas, histéricas, incontroláveis, enquanto os homens ilustram a razão e a solução dos problemas. O Bebê de Rosemary representa uma pedra inicial neste processo, com uma diferença importante: na obra de Polanski, o ponto de vista permanece junto à mulher, acompanhando seus sentimentos mais íntimos e garantindo que, no final, o inferno seja os outros. Ora, Gêmeo Maligno não demora a sugerir que Rachel está de fato louca, e que o marido, visto como possível ameaça, estava carregado de pura bondade.

Esta imagem da mulher hormonal se reproduziu a seguir nas histórias de possessão, onde uma garotinha virginal tem seu corpo tomado por uma força do além (de voz e aspecto masculinos), o que reforça a conotação de violência sexual. A pobre grita e esperneia, até um padre mais velho, típica figura paterna, proferir algumas frases que expulsem o diabo e coloquem a menina de volta ao lugar casto de onde nunca deveria ter saído. A aparência angelical e as camisolas brancas nas vítimas de possessões servem a reforçar tanto a infantilidade quanto a virgindade.

Assim, cabe aos homens controlar, proteger e manter a pureza das mulheres. São elas que enxergam vultos, supostamente por serem mais sensíveis. Serão elas que perderão a cabeça após a morte do filho, ou que lutarão com mais força para protegê-lo, em oposição aos pais tranquilos que aceitam as tragédias e seguem adiante. A existência do mítico “instinto materno” faz com que os corpos e identidades femininas sejam vistos como problemáticos, irascíveis, naturalmente propensos às tarefas domésticas e ao cuidado das crianças. Talvez por se dedicarem aos bebês, não cuidem de si próprias — esta tarefa compete aos homens.

Rachel consiste no ápice da mulher enlouquecida. Ela tem pesadelos com caixões se mexendo, enquanto o marido dorme noites sossegadas. A forasteira trava amizade somente com outra mulher nesta cidade finlandesa — justamente a louca do vilarejo. A fotógrafa acredita estar sendo perseguida, amarrada, forçada a integrar sinistras cerimônias noturnas. Ela grita com o filho sem motivo, perde-o em mais de uma oportunidade. No acidente de carro, o único rosto visto nas imagens é o dela — gritando, claro. Em meio aos novos vizinhos, torna-se raivosa com o marido, e sofre de um ataque histérico no chão, enquanto todos observam.

Ora, rumo ao final, o filme dará razão ao resto do mundo contra a mulher incapaz de efetuar o luto. Ela será uma vítima por quem o projeto se apieda, contanto que na condição de um julgador externo e moralizante. Nutre-se certo pesar por Rachel, como quem lamenta pelas pessoas enlouquecidas em hospitais psiquiátricos, com certo desdém ou repulsa pela degradante situação alheia. Mesmo a compreensão de seu estado psíquico surge num momento abrupto, fácil demais: a narrativa sustenta a dúvida quanto à realidade desta mulher, até estimar que já ocultou o segredo o suficiente, revelando ao espectador o que aconteceu de fato. 

Neste instante, a verdade é explicada letra por letra, sem qualquer esforço de descoberta por parte da mulher. Nem mesmo este mérito ela terá por conta própria: o homem se encarrega de colocá-la nos eixos, explicar aquilo que a esposa seria incapaz de compreender sozinha. Gaslighting e mansplaining andam de mãos dadas, no caso. Palmer defende esta mulher com um talento impressionante, mas este terror insiste em depreciá-la, passo a passo. Mães sofrem, mulheres se desequilibram, como já havia demonstrado o sádico Mãe! (2017), de Darren Aronofsky. 

Aqui, podemos falar de um filme misógino, ao invés de um filme sobre a misoginia — duas coisas radicalmente diferentes. Gêmeo Maligno ainda se enfraquece pela sucessão inesgotável de clichês imagéticos: a visão aérea do carro solitário dirigindo entre a floresta; o plano noturno do casarão coberto por uma quantidade absurda de gelo seco; o casal em crise que se depara com uma nítida mansão mal-assombrada e se exclama “Vamos ser muito felizes aqui!”; a portinha fechada no sótão levando a locais escuros e perigosos. Caso se assumisse como homenagem, paródia ou colagem de filmes alheios, o resultado seria mais interessante. Entretanto, Mustonen parece acreditar, em sua seriedade, que está construindo uma bela obra original.

Gêmeo Maligno (2022)
3
Nota 3/10

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