Diante de um filme como Gloria!, é importante discutir o direito à ingenuidade e à inocência no cinema contemporâneo. No musical italiano-suíço de Margherita Vicario, uma garota emudecida reencontra a voz graças à música. Outra descobre seu potencial de canto graças à melodia composta pelas colegas. Um homem morrerá de susto — literalmente — ao escutar uma criação moderna demais para o ano 1800. A menina que nunca tocou piano descobre-se uma musicista profissional ao encostar nas teclas do piano pela primeira vez.
Em cada cena, o projeto remete a uma fábula de princesas da Disney, com direito às irmãs malvadas, à madrasta perversa, às cenas de canto e dança graças ao poder da imaginação. A trama constitui um amálgama cor-de-rosa do feel good cinema norte-americano (No Ritmo do Coração, Música do Coração) e europeu (A Voz do Coração). Aposta em alto grau de previsibilidade e mensagens a respeito da importância de acreditar em si mesmo, cercar-se de amigos e ter fé que as injustiças serão eventualmente consertadas graças à boa índole das novas gerações.
Em especial, a narrativa empresta uma estrutura semelhante àquela de Mudança de Hábito: o Papa decide visitar uma pequena instituição religiosa, que precisa preparar uma apresentação à altura do pontífice. Mediante à pressão, a responsabilidade recai na menos católica das moradoras (uma ex-prostituta no caso de Whoopi Goldberg; uma garota de passado impuro no caso de Galatéa Bellugi). Ao final, as criações inventivas das meninas surpreendem por enfrentarem os cânones clássicos da música e da religião.
Como justificar, em nossos tempos maliciosos, velozes e cínicos, que alguém ainda morra de amor (antes de ser ressuscitada pela beleza de uma melodia)?
Ora, qual o sentido deste tipo de mensagem atualmente? Qual o papel de um feminismo que depende somente da boa vontade e da integridade individual, ao invés de uma luta coletiva? Como justificar, em nossos tempos maliciosos, velozes e cínicos, que alguém ainda morra de amor (antes de ser ressuscitada pela beleza de uma melodia em sua homenagem)? Mesmo as fábulas infantis originais continham alto grau de perversidade e perigo, posto que visavam educar as crianças através do medo. No entanto, Gloria! dispensa o aspecto sombrio capaz de equilibrar tamanha sacarina.
Por este motivo, as eventuais passagens graves na vida de Teresa (Galatéa Bellugi), a gata borralheira da vez, serão mencionadas de passagem pelos diálogos, sem indício imagético, nem contextualização dos fatos. Se há trevas, que sejam mencionadas enquanto algo passageiro, distante de nós e desta realidade. O filme sustenta um otimismo maníaco, inserido forçosamente graças a concessões da ordem do naturalismo, da verossimilhança e da lógica. Sua verdadeira revolta não ocorre contra a igreja católica, nem as convenções que limitavam a independência feminina, mas contra a complexidade do real.
Estritamente falando, Vicario e sua equipe têm todo o direito de fazerem o filme que quiserem. A autora manifesta um desejo nostálgico, e fundamentalmente reacionário, em relação àquele cinema que não se faz mais, às narrativas fáceis de bons sentimentos e mensagens de encorajamento. Ao final, insere um letreiro de contextualização histórica (uma moda que já afeta quatro filmes na competição do Festival de Berlim) para explicar a importância de seu tema. Mas de que adianta oferecer 105 minutos de algodão-doce para, no final, nos lembrar da importância de uma alimentação saudável? O panfleto se contradiz.
No entanto, esta representação do feminino e da igreja se opõe a qualquer prática de uma ideologia combativa, questionadora de causas e consequências. A comédia musical enxerga problemas morais em indivíduos específicos, porém se recusa a vislumbrar falhas no sistema. A garota com mal de amores se apaixonará novamente; a outra, afastada de uma criança de sua predileção, voltará a se aproximar do menino. O longa-metragem testa pequenas ousadias, tal qual um pré-adolescente, somente para indicar que, no final, tudo retorna ao lugar de origem. (Nada indica alguma mudança na instituição religiosa central).
Vicario inicia sua aventura numa sequência musical, com saias e vestidos rodando em plongée, e encerra o percurso diante de uma paisagem paradisíaca, onde ostenta a força do amor e da amizade. Tudo se salvará, afinal — a comédia romântica e a comédia musical se legitimam pelo princípio de uma recompensa emocional. “Você terá leve receio quanto ao destino das heroínas sofridas, mas aguente um pouco, e a redenção será ainda maior rumo ao desfecho”, parece nos alertar a obra. Quer um raciocínio mais cristão do que a purificação via martírio? Devemos admirar Teresa ainda mais porque sofreu.
Conforme descobrimos seus traumas, ela deveria se tornar exponencialmente querida pelo espectador, em chave condescendente, paternalista. Galatéa Bellugi força o olhar de humildade, enquanto as amigas ao redor exibem seus namoros às escondidas e cintas-ligas adquiridas clandestinamente. O roteiro estima que terminarão por ensinar, um à outra, a pureza e a autoconfiança: as meninas malvadas e tornam solidárias, enquanto a colega servil descobre as vantagens de se impor.
Gloria! foi o primeiro filme da mostra competitiva do Festival de Berlim a despertar vaias no final da sessão — para ser justo, as vozes descontentes foram raras, e atenuadas pelos aplausos calorosos das vozes discordantes. Em meio à vitrine privilegiada da Berlinale, cuja função seria de expor aquilo que o cinema mundial produz de mais interessante e inovador, ele certamente provoca incômodo. Em filmes retrógrados, machistas ou romantizados, a exemplo de Black Tea e Gloria!, o evento insiste que o novo cinema de autor ainda nutre uma relação de copendendência tóxica com conservadorismo político e estético das produções de estúdio.