Gloria! (2024)

Mudança de hábito

título original (ano)
Gloria! (2024)
país
Itália, Suíça
gênero
Comédia, Drama, Musical
duração
106 minutos
direção
Margherita Vicario
elenco
Galatéa Bellugi, Carlotta Gamba, Veronica Lucchesi, Maria Vittoria Dallasta, Sara Mafodda, Paolo Rossi, Elio, Vincenzo Crea,
Natalino Balasso, Anita Kravos, Jasmin Mattei
visto em
74º Festival de Cinema de Berlim (2024)

Diante de um filme como Gloria!, é importante discutir o direito à ingenuidade e à inocência no cinema contemporâneo. No musical italiano-suíço de Margherita Vicario, uma garota emudecida reencontra a voz graças à música. Outra descobre seu potencial de canto graças à melodia composta pelas colegas. Um homem morrerá de susto — literalmente — ao escutar uma criação moderna demais para o ano 1800. A menina que nunca tocou piano descobre-se uma musicista profissional ao encostar nas teclas do piano pela primeira vez.

Em cada cena, o projeto remete a uma fábula de princesas da Disney, com direito às irmãs malvadas, à madrasta perversa, às cenas de canto e dança graças ao poder da imaginação. A trama constitui um amálgama cor-de-rosa do feel good cinema norte-americano (No Ritmo do Coração, Música do Coração) e europeu (A Voz do Coração). Aposta em alto grau de previsibilidade e mensagens a respeito da importância de acreditar em si mesmo, cercar-se de amigos e ter fé que as injustiças serão eventualmente consertadas graças à boa índole das novas gerações.

Em especial, a narrativa empresta uma estrutura semelhante àquela de Mudança de Hábito: o Papa decide visitar uma pequena instituição religiosa, que precisa preparar uma apresentação à altura do pontífice. Mediante à pressão, a responsabilidade recai na menos católica das moradoras (uma ex-prostituta no caso de Whoopi Goldberg; uma garota de passado impuro no caso de Galatéa Bellugi). Ao final, as criações inventivas das meninas surpreendem por enfrentarem os cânones clássicos da música e da religião. 

Como justificar, em nossos tempos maliciosos, velozes e cínicos, que alguém ainda morra de amor (antes de ser ressuscitada pela beleza de uma melodia)?

Ora, qual o sentido deste tipo de mensagem atualmente? Qual o papel de um feminismo que depende somente da boa vontade e da integridade individual, ao invés de uma luta coletiva? Como justificar, em nossos tempos maliciosos, velozes e cínicos, que alguém ainda morra de amor (antes de ser ressuscitada pela beleza de uma melodia em sua homenagem)? Mesmo as fábulas infantis originais continham alto grau de perversidade e perigo, posto que visavam educar as crianças através do medo. No entanto, Gloria! dispensa o aspecto sombrio capaz de equilibrar tamanha sacarina.

Por este motivo, as eventuais passagens graves na vida de Teresa (Galatéa Bellugi), a gata borralheira da vez, serão mencionadas de passagem pelos diálogos, sem indício imagético, nem contextualização dos fatos. Se há trevas, que sejam mencionadas enquanto algo passageiro, distante de nós e desta realidade. O filme sustenta um otimismo maníaco, inserido forçosamente graças a concessões da ordem do naturalismo, da verossimilhança e da lógica. Sua verdadeira revolta não ocorre contra a igreja católica, nem as convenções que limitavam a independência feminina, mas contra a complexidade do real.

Estritamente falando, Vicario e sua equipe têm todo o direito de fazerem o filme que quiserem. A autora manifesta um desejo nostálgico, e fundamentalmente reacionário, em relação àquele cinema que não se faz mais, às narrativas fáceis de bons sentimentos e mensagens de encorajamento. Ao final, insere um letreiro de contextualização histórica (uma moda que já afeta quatro filmes na competição do Festival de Berlim) para explicar a importância de seu tema. Mas de que adianta oferecer 105 minutos de algodão-doce para, no final, nos lembrar da importância de uma alimentação saudável? O panfleto se contradiz.

No entanto, esta representação do feminino e da igreja se opõe a qualquer prática de uma ideologia combativa, questionadora de causas e consequências. A comédia musical enxerga problemas morais em indivíduos específicos, porém se recusa a vislumbrar falhas no sistema. A garota com mal de amores se apaixonará novamente; a outra, afastada de uma criança de sua predileção, voltará a se aproximar do menino. O longa-metragem testa pequenas ousadias, tal qual um pré-adolescente, somente para indicar que, no final, tudo retorna ao lugar de origem. (Nada indica alguma mudança na instituição religiosa central).

Vicario inicia sua aventura numa sequência musical, com saias e vestidos rodando em plongée, e encerra o percurso diante de uma paisagem paradisíaca, onde ostenta a força do amor e da amizade. Tudo se salvará, afinal — a comédia romântica e a comédia musical se legitimam pelo princípio de uma recompensa emocional. “Você terá leve receio quanto ao destino das heroínas sofridas, mas aguente um pouco, e a redenção será ainda maior rumo ao desfecho”, parece nos alertar a obra. Quer um raciocínio mais cristão do que a purificação via martírio? Devemos admirar Teresa ainda mais porque sofreu. 

Conforme descobrimos seus traumas, ela deveria se tornar exponencialmente querida pelo espectador, em chave condescendente, paternalista. Galatéa Bellugi força o olhar de humildade, enquanto as amigas ao redor exibem seus namoros às escondidas e cintas-ligas adquiridas clandestinamente. O roteiro estima que terminarão por ensinar, um à outra, a pureza e a autoconfiança: as meninas malvadas e tornam solidárias, enquanto a colega servil descobre as vantagens de se impor.

Gloria! foi o primeiro filme da mostra competitiva do Festival de Berlim a despertar vaias no final da sessão — para ser justo, as vozes descontentes foram raras, e atenuadas pelos aplausos calorosos das vozes discordantes. Em meio à vitrine privilegiada da Berlinale, cuja função seria de expor aquilo que o cinema mundial produz de mais interessante e inovador, ele certamente provoca incômodo. Em filmes retrógrados, machistas ou romantizados, a exemplo de Black Tea e Gloria!, o evento insiste que o novo cinema de autor ainda nutre uma relação de copendendência tóxica com conservadorismo político e estético das produções de estúdio.

Gloria! (2024)
2
Nota 2/10

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