Jamal Phoenix observa diretamente a câmera. Mais do que observar, ele a confronta, encara. Fala com orgulho, numa voz firme e sem hesitações, a respeito de sua profissão, seu corpo, seus prazeres. O protagonista, um homem trans que trabalha na indústria pornográfica, interpreta a oportunidade de se revelar à imagem não-pornográfica enquanto maneira de fazer justiça, retirando dúvidas e mal-entendidos.
O diretor Emre Busse demonstra seriedade equivalente no que diz respeito às ambições do documentário. Pela rigidez do dispositivo (a entrevista concedida em estúdio, sob fundo de quadros de anjos), sugere que o sexo, o corpo trans e a pornografia devem ser encarados como objetos de pesquisa e estudo. Retiremos a “vocação masturbatória” do centro da discussão por um momento, por favor. Pensemos no corpo enquanto máquina, performance, desempenho.
O ator revela as características que fariam de sua bunda uma ferramenta impecável para o sexo anal. Discute a curvatura perfeita da parte inferior da lombar, para garantir uma penetração adequada. “O tema bunda é controverso em si mesmo”, sugere. Compara suas “duas bocetas”, a “da frente e a de trás”. Lista as características de um passivo ideal. Afirma que os comentários depreciativos a respeito do seu trabalho constituem mera inveja por parte de pessoas com corpos menos avantajados.
Entre fragmentos de fala, o cineasta revela o artista sentando numa prótese de pênis. Os planos se tornam cada vez mais fechados, graças à montagem, que visa revelar em detalhes o ânus e garantir o realismo do dispositivo. “Nada disso é simulado”, sugerem as cenas. “Isso está realmente acontecendo”. Existe uma vontade de soar verdadeiro, de aproximar a câmera como se ela mesma fosse penetrar o ator principal. Estamos em pleno domínio (consciente ou não) do fetichismo do corpo e da genitalidade.
As falas de Jamal possuem força e clareza. Há valor notável em permitir ao jovem controlar o discurso por seu ponto de vista e seu corpo. No entanto, a tendência a espetacularizar o encontro pode despertar ressalvas. Busse oferece planos de detalhe na cicatriz no peito, decorrente da retirada dos seios. Despe o personagem aos poucos, ao longo das entrevistas. Assim, ostenta evidente vontade de chocar, de provocar o espectador acerca de seus preconceitos relacionados ao sexo.
O diretor imaginaria a projeção do curta-metragem num festival generalista, a uma plateia conservadora? Dentro do Teatro da Cidade de São Luís, os espectadores assistiam sem grandes surpresas à imagem da penetração anal — que, retirada do contexto artístico, não seria muito diferente de tantas outras que se multiplicam pela Internet. Esta foi apenas a parte III de uma trilogia mais ampla. Quem sabe a exibição da trinca de curtas-metragens pudesse atribuir um significado mais profundo à abordagem artística?
De qualquer modo, Godasses: Parte III — Jamal Phoenix interessa mais enquanto protagonismo do corpo negro, trans e profissional do sexo do que pela vontade explícita de perturbar sensibilidades. Nem mesmo a relação com os quadros clássicos ao fundo, algo que renderia reflexões frutíferas, se aprofunda no projeto. Resta a voz impassível de um homem potente, personagem assumido enquanto tal, enaltecendo-se num gesto válido de autoafirmação. É compreensível, para além do exercício de vaidades, que diretor e personagem se coloquem neste pedestal.