Esposa está descontente com o marido. Ela não se acostuma ao mundo de riquezas e jantares de luxo, mas ele insiste em carregá-la a tiracolo para apresentar aos colegas empresários. De repente, Fanny (Lou de Laâge) cruza com Alain (Niels Schneider) na rua. O ex-colega de escola confessa, insistentemente, sua paixão ainda fervorosa por ela. A mulher tem medo de colocar o casamento com Jean (Melvil Poupaud) em risco, mas não consegue parar de pensar no rapaz.
Os acontecimentos a seguir se desenvolvem numa previsibilidade atroz. Começa o caso extraconjugal, apesar da vigilância evidente do marido ciumento. Fanny nem faz questão de esconder de fato a traição: ela liga para o amante de dentro de casa, deixa bilhetes comprometedores no bolso do casaco. Parece que, em certa medida, gostaria de ser pega — talvez num ato inconsciente de autossabotagem, para fugir à vida entediante de hipocrisias entre milionários. Infelizmente, o roteiro nunca explora a psicologia desta mulher. A protagonista soa somente ingênua e infantil.
Não é preciso ser particularmente astuto para compreender a periculosidade de Jean. Os diálogos nos lembram que o antigo sócio dele desapareceu misteriosamente, e que o sujeito adora caçar animais selvagens na floresta. Ninguém precisa ter um senso de dedução afiado para compreender que Fanny está se apaixonando por Alain, posto que ela se questiona, em voz alta: “Por que penso em você o tempo todo?”. Sabemos que a heroína reconsidera seu casamento, já que ela o verbaliza à amiga: “Como teria sido a minha vida com Alain?”.
Nenhum personagem existe para além do conflito único da traição. Esteticamente, o longa-metragem tampouco apresenta qualquer imagem digna de interesse.
Curiosamente, cada passo de Golpe de Sorte em Paris precede uma explicação ao espectador, considerado pouco inteligente. Neste triângulo amoroso, a garota pueril precisa escolher entre um sujeito que acredita muito na sorte (porque ele explicita isso o tempo inteiro) e outro que despreza a sorte, preferindo o planejamento (novamente, porque o marido afirma “Eu, quando tomo uma decisão, não mudo de ideia”). Woody Allen não deixa nenhum trabalho de elaboração ao espectador: cada pequena simbologia ou metáfora será esmiuçada, revirada e repetida até perder o sentido.
Logo, nenhum personagem existe para além do conflito único da traição. Dia após dia, Alain surge nas praças parisienses, repleto de sorrisos e afeto; entretanto, desaparece quando Fanny está ausente. O que mais ocorre em sua vida, além das escapadas vespertinas? A heroína constitui uma galerista que jamais demonstra o mínimo interesse por obras de arte, nem mesmo pela profissão do marido, certamente envolvido em esquemas ilícitos de enriquecimento. Ela apenas fecha os olhos aos problemas e segue adiante. É difícil nutrir empatia por figuras tão pobres em desenvolvimento ou motivações.
Esteticamente, o longa-metragem tampouco apresenta qualquer imagem digna de interesse, ou do mínimo de elaboração conceitual. Os personagens flanam pela cidade pelo ímpeto de fazê-lo, sem rumo específico — sustentando a vocação de uma obra turística. As conversas ocorrem em planos de conjunto banais, orquestrados em planos e contraplanos acadêmicos. Allen não pesquisa nenhuma forma puramente estética de representar a solidão da mulher, a periculosidade do marido ou a sedução representada pelo amante. O trio se relaciona porque, neste universo esvaziado de conflitos, não teriam mais nada a fazer de seus dias. O romance se transforma uma inevitabilidade.
A parceria com Vittorio Storaro, na direção de fotografia, havia despertado certo furor alguns anos atrás. No entanto, o italiano tampouco altera muito sua cartilha pessoal. Isso significa que, dentro de casa, cada personagem tem direito ao seu próprio pôr-do-sol alaranjado no rosto, mesmo que haja três sóis oriundos de direções diferentes. Manda-se o naturalismo às favas: o artista filma todas as histórias como se fossem a mesma, como se fossem suas, aplicando cores saturadas e rigidez nas composições, seja para um romance à beira da praia (Roda Gigante) ou para os tangos de Carlos Saura.
Enquanto isso, o humor do cineasta tem murchado ao limite da mínima caricatura, de vertente preconceituosa. Passadas décadas de demandas por representatividade e críticas à branquitude hegemônica do norte-americano, ele ainda não consegue colocar pessoas não-brancas em papéis de destaque. Prefere rir do matador romeno, da investigadora LGBQTIA+, enquanto o afeto é reservado aos rostos e corpos normativos. Se já transbordou de cinismo e ironia um dia, Allen abandona qualquer esforço para que seus diálogos ultrapassem as trocas banais e informativas. Metade das interações deste longa-metragem se traduziria em conversa de elevador.
Talvez seja inútil comparar o diretor, hoje, com o cineasta empolgante de 40 anos atrás. Há pelo menos 25 anos, o criador foi desprezando as ambições de linguagem, de narrativa, de diálogo, de construção de personagens. Podemos esquecer a fantasia de A Rosa Púrpura do Cairo, a psicologia complexa de A Outra e Interiores, as reviravoltas mirabolantes de Poderosa Afrodite e Zelig, os diálogos afiadíssimos de A Era do Rádio e Noivo Neurótico, Noiva Nervosa. Não existe mais traço desta malícia e engenhosidade, nem na escrita, nem na elaboração de imagens. O autor aparenta filmar pelo ímpeto de fazê-lo, porque pode — porém, no piloto automático.
Por isso, entope suas narrativas com soluções milagrosas ou improváveis. O apartamento do sujeito desaparecido permanece aberto, com a porta escancarada, dias após o crime, para que informações possam ser encontradas com facilidade no interior. A sogra (Valérie Lemercier), desconfiadíssima que o sogro seria um assassino, aceita de bom grado passar a tarde com ele, a sós, numa floresta. Jean, sabendo das suspeitas contra ele, guarda informações comprometedoras na gaveta de fácil acesso. Quando o desfecho está prestes a chegar, o homem desfere, num jantar: “É assim. As pessoas morrem”. Como alimentar qualquer expectativa quando o filme que nos antecipa, insistentemente, sobre as próximas cenas?
Golpe de Sorte em Paris encerra-se na condição de uma comédia sem humor, e num suspense sem tensão. Mesmo sua pequena surpresa no final pode antecipada, e será sublinhada pela voz didática em off, repetindo o recurso de predileção do cineasta para conclusões. O tema do acaso e da sorte domina a filmografia de Allen, que já realizou pelo menos meia dúzia de filmes sobre o tema: Tiros na Broadway, Melinda e Melinda, Magia ao Luar, Você Vai Conhecer o Homem dos Seus Sonhos, Match Point, etc. Não existe uma única ideia ou solução narrativa inédita nesta. Allen parece plagiar a si próprio.
Se algo pode ser retirado desta iniciativa, é o prestígio que o diretor mantém em alguns países-chave, mesmo face à baixa qualidade de suas obras recentes, e às acusações de abuso sexual. O norte-americano filma na França porque o país o apoia e financia suas iniciativas. Qualquer longa-metragem com Guillaume de Tonquédec, Elsa Zylberstein, Arnaud Viard e Grégory Gadebois em papéis coadjuvantes, além do quarteto central, seria uma produção de luxo nas mãos de um cineasta francês. Allen ainda pode se dar ao luxo de contar com os maiores colaboradores para efetuar seus menores filmes.