“Tudo o que eu queria era que minha história fosse contada. Eu precisava contar minha história, para dar esperança às pessoas”. Em visita ao Brasil especialmente para o Olhar de Cinema, a atriz, roteirista e produtora sul-africana Mothiba Grace Bapela frisou este aspecto como principal motivação para uma árdua luta, de dez anos, até conseguir viabilizar o longa-metragem documental a respeito de sua vida. Ela afirma ter batalhado contra a falta de recursos, e ter perdido num assalto o computador onde se encontravam as imagens do filme.
Esta noção sempre foi bastante curiosa dentro das criações cinematográficas. Por que algumas histórias precisariam ser contadas? O que faz de uma vivência mais merecedora de representação do que outra? Mesmo que a obra venha, de fato, a inspirar os espectadores, por que seria função da arte transmitir esperança? Os intuitos são benevolentes, é claro. No entanto, nota-se, por parte da artista, a compreensão da arte enquanto veículo moral acima de tudo.
Essa percepção justifica a longa história que parte da adolescência à fase adulta, quando Bapela já é avó. Ela confessa os maus-tratos com patrões, as humilhações, a fuga de casa, o estupro sofrido por dois homens, o dia em que descobriu a cabeça de um rapaz negro dentro de uma geladeira. Confessa ter dificuldades no amor, e menciona a dor de, após anos trabalhando como empregada doméstica, voltar a usar exatamente o uniforme de trabalho ao interpretar uma doméstica.
Em consequência, as autoras estimam que esta história precise ser contada porque sua heroína sofreu muito, porém conseguiu sobreviver a tantos obstáculos e injustiças. Há um duplo caráter de valorização, através do martírio e da superação graças à força de vontade. A religião está praticamente ausente da trajetória, entretanto, Grace Tomada Única transmite a forte impressão de uma obra cristã — não no sentido de doutrinação, mas de se apropriar de um caso excepcional como lição de algo que poderia servir à vivência de todos. O que seria Jesus senão a exceção exemplar na qual todos deveriam se inspirar?
O pressuposto de cinema efetuado a qualquer preço, custe o que custar, justifica tanto a aparência de urgência quanto a estética caseira, assumidamente amadora.
O pressuposto de cinema efetuado a qualquer preço, custe o que custar, justifica tanto a aparência de urgência quanto a estética caseira, assumidamente amadora. As câmeras são simples, de baixa qualidade, assim como a captação do som. Às vezes, a protagonista utiliza um pequeno dispositivo de registro em vídeo preso ao pescoço, de modo que seu queixo invade a parte superior do quadro. Quando um bebê se diverte no chão, a câmera treme a esmo, sem saber como enquadrar a cena. Na interação entre mãe e filhos, a câmera disposta sobre a mesa, com uma lente extremamente grande-angular, distorce o resultado e faz com que o móvel ocupe parte considerável da imagem.
Talvez o documentário seja considerado ainda mais valioso por não se importar com enquadramentos precisos, luzes trabalhadas, movimentos fluidos de câmera. Ao deixar a estética em segundo plano, a diretora Lindiwe Matshikiza parece colocar o humanismo, e a importância do tema, enquanto reais protagonistas. Nenhum artifício rebuscado disputa a atenção com a presença desta mulher forte e determinada, capaz de fazer faxina com o bebê amarrado nas costas, e depois levá-lo consigo a um teste de elenco.
Bapela controla o discurso. Do início ao fim, ela apresenta sua jornada, suas ferramentas de superação, suas reflexões pós-traumáticas. A artista domina o som e a imagem, com poucos entraves em seu caminho: ela basicamente transforma o dispositivo cinematográfico em meio necessário a um fim mais nobre, no caso, a veiculação de sua história. Em consequência, o longa-metragem adquire um tom descritivo, didático. Trata-se de um filme no pretérito imperfeito: eu fazia, eu ia, eu gostava, eu tentava, eu resistia. As imagens repetem o som, ilustrando-o da melhor maneira possível.
Na ausência de registros do passado, a mise en scène recorre a alternativas lúdicas. A sequência correspondente ao estupro se transforma numa animação de traços básicos, além de recortes e sobreposições. A abertura e encerramento de teor filosófico e/ou questionador apresentam o rosto da heroína multiplicado por dois ou três, eventualmente escondido atrás de pérolas. As metáforas possuem pouco refinamento visual, e transparecem os recursos limitados da produção. No entanto, revelam o esforço de produzir relevo e atritos entre o realismo e o domínio dos sentimentos.
Infelizmente, no que diz respeito à estrutura, Grace Tomada Única revela uma organização um tanto caótica. Temas importantes são introduzidos de maneira abrupta (o câncer, a vida amorosa), e então abandonados com mesma rapidez. Enquanto isso, as questões envolvendo os filhos, o trabalho como atriz e a fuga de casa na adolescência vem e vão, em fragmentos dispersos. A diretora aparenta evocar memórias afetivas em ordem aleatória, decorrente de uma montagem em fluxo contínuo e indiscriminado.
A apreciação do resultado dependerá muito daquilo que o espectador esperar do cinema, enquanto representação de mundo. Para quem acredita que o cinema serve a contar boas histórias, compreendidas como histórias excepcionais, o projeto cumpre seu intuito com folga. A personagem é certamente apaixonada pelo que diz, e compartilha cada episódio com uma sinceridade ímpar, sem embelezar as conquistas, nem as derrotas. Para quem estima que a linguagem seja fundamental, e que mais importante do que a história, seria a maneira como esta narrativa é contada, a obra deixa a desejar.
Certo, as dificuldades de viabilização foram inúmeras, no entanto, cabe avaliar o projeto que de fato chega aos olhos do espectador. A condescendência com a obra, considerando-a menor do que outros filmes do festival, está longe de representar uma forma de respeito. Aqui, nem todos os percalços foram driblados de maneira inventiva, utilizando a estética da marginalidade a seu favor. Em alguns aspectos, percebe-se que os criadores filmaram como puderam, da única maneira possível. Enquanto retórica, o gesto se reveste de valor pela fé cênica, graças à crença no potencial transformador da arte. Enquanto estética, tem dificuldade de esconder certos remendos e atalhos. Para o bem ou para o mal, após assistir a Grace Tomada Única, restará Bapela.