Hanami (2024)

Beleza rara

título original (ano)
Hanami (2024)
país
Suíça, Portugal, Cabo Verde
gênero
Drama, Fantasia
duração
96 minutos
direção
Denise Fernandes
elenco
Sanaya Andrade, Daílma Mendes, Alice Da Luz, Nha Nha Rodrigues, Yuta Nakano
visto em
77º Festival de Locarno (2024)

Para a pequena Nana, o mundo parece tão familiar quanto estranho. Por um lado, ela sempre viveu na mesma ilha vulcânica, pertencente ao arquipélago de Cabo Verde. Está acostumada tanto com aspectos da vida prática quanto com as fábulas e superstições contadas pelos mais velhos. Ela não se assusta quando, após uma erupção, precisa esperar a lava esfriar para andar sobre os rochedos e buscar uma planta capaz de curar sua febre. Esta natureza tão acolhedora quanto perigosa representa tudo o que conheceu em seus poucos anos de vida.

Por outro lado, ela está repleta de dúvidas acerca do mundo dos adultos. Por que a mãe a abandonou quando criança? Ainda que receba carinho e cuidados das demais mulheres da região, ignora os motivos que a deixaram sem uma referência nuclear de maternidade. Ela brinca com os amigos, respeita os anciões, executa as suas tarefas, porém preserva um olhar perdido, melancólico. Criança de poucas palavras, mostra-se tão obediente quanto misteriosa a respeito de seus pensamentos. Em diversas cenas, a menina contempla o horizonte com o olhar perdido.

Hanami surpreende pela facilidade no trato com o elenco mirim. A cineasta Denise Fernandes consegue deixar as crianças confortáveis a ponto de obter uma espontaneidade normalmente reservada aos documentários. Elas parecem agir livremente, falar o que lhes vem à cabeça, como se não houvesse uma equipe à sua frente. É muito fácil acreditar na intimidade daqueles meninos e meninas com a ilha. Aparentam interpretar uma versão de si próprios, ou apenas brincarem para a câmera discreta que os rodeia. A beleza do cotidiano nasce desta troca generosa entre equipe e elenco.

Hanami surpreende pela facilidade no trato com o elenco mirim, mas se enfraquece consideravelmente na segunda metade, quando acelera reviravoltas.

Estas qualidades poderiam sugerir um filme de câmera na mão, acontecimentos aleatórios, incorporando os acidentes do acaso. Pelo contrário, Hanami transparece um cuidado rigoroso com enquadramento, luz, som e montagem. A diretora toma o tempo de dispor cada corpo e personagem diante das ondas, na varanda das casas, ou sobre um fundo pintado, onde tiram fotografias de família. Busca a simetria, os terços exatos do quadro, o local onde a iluminação favoreça as protagonistas. O trabalho com luz natural impressiona pelo nível e minúcia e controle, beirando o estetizante — o real e o artificial (ou o hipperrealismo) dialogam sem parar durante a experiência do longa-metragem.

Apesar de uma organicidade ímpar na metade inicial, a narrativa sofre diversas guinadas bruscas a seguir. Uma delas diz respeito à aparição mágica do homem japonês, explicando aos moradores o conceito de “hanami”, relacionado ao gesto de contemplar a beleza das flores. Após uma ambiguidade persistente entre o natural e o sobrenatural, este personagem de aparição brusca demarca definitivamente a intromissão fantástica na trama. Em paralelo, tira o foco de Nana, que desaparece da narrativa, pela primeira vez, durante longos minutos. 

O resultado sofre com a alternância de foco: a trama, contada até então pelo olhar curioso e introvertido da menina, adquire um olhar externo. De repente, ela deixa de ser sujeito para se tornar mais um objeto de estudo, assim como a ilha, os costumes, a beleza natural. Nenhuma imagem ou interação possui o mesmo interesse sem a heroína, que retornará somente na adolescência, com o corpo de uma atriz de estilo radicalmente diferente (apesar de manter o tom intimista). Anos depois, Nana exibe um corpo ereto e uma postura de bailarina que a criança estava longe de manifestar. A espontaneidade infantil cede espaço a uma atriz que está, ostensivamente, atuando para as câmeras.

Ainda nas mudanças repentinas, a mãe retorna, tentando explicar em poucas palavras a decisão de partir devido a uma dor interna, de difícil definição. Uma depressão pós-parto, talvez? Para a segunda Nana, isso não importa. A garota abraça sem reservas a adulta misteriosa, acolhendo-a com os poucos recursos à disposição (ela permite que a mãe-desconhecida leve quatro doces sem pagar). Está feliz pela concretização daquela figura que existia apenas no domínio das ideias. Não possui rancor, nem procura um acerto de contas. Manifesta unicamente o afeto genuíno e simples, até demais.

Hanami enfraquece-se consideravelmente nesta segunda metade, quando acelera reviravoltas, promovendo um encontro cultural que não está disposto a esmiuçar (o embate África-Estados Unidos). Saudade, dúvida, raiva, indignação e tristeza são minimizadas em prol de uma aproximação imediata, semelhante a um grande sonho do qual Nana poderia acordar a qualquer momento. Ao menos, reserva-se à adolescente a dignidade de tomar algumas decisões importantes rumo ao final. Ela preserva, assim, uma parcela importante de autonomia para equilibrar tamanha doçura e passividade.

Por fim, a obra se situa na linha fina entre a poesia feita a partir de uma realidade local e a beleza para exportação, visando encantar olhares estrangeiros e abocanhar prêmios — Denise Fernandes recebeu o troféu de diretora emergente em Locarno. Seria interessante saber se os cabo-verdianos se sentem representados por esta representação lúdica da realidade, ou se encontram alguma forma de “cosmética da fome” sentida pelos brasileiros diante de Cidade de Deus e Abril Despedaçado. De qualquer modo, revela uma diretora de potencial, dotada de qualidades raras, que talvez floresçam numa obra de discurso ainda mais coeso em um futuro próximo.

Hanami (2024)
7
Nota 7/10

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