Happy (2024)

Lamentação

título original (ano)
Happy (2024)
país
Áustria
gênero
Drama
duração
110 minutos
direção
Sandeep Kumar
elenco
Sahidur Rahaman, Lilian Klebow, Roland Düringer, Adam Sandhu, Gisela Salcher, Robert Ritter, Shirin Grace
visto em
48ª Mostra de São Paulo (2024)

O indiano Happy Singh (Sahidur Rahaman) tem uma reunião com o oficial austríaco encarregado de seu pedido de asilo na Europa. A demanda é negada. Então, ele telefona para o advogado responsável pelo caso, implorando por ajuda. O homem o dispensa e aconselha que simplesmente aceite a deportação iminente. Busca, em seguida, abrigo na escola da filha pequena. A professora o retira do local. Mais tarde, encontra sua filha na saída das aulas, e a menina confessa a vergonha em relação à pobreza do pai. 

A garota deseja uma presilha de Frozen, que ele não pode comprar. Quer sapatos vermelhos, que ele tampouco consegue adquirir. Quando Happy enfim conquista uma mobilete velha, ela reclama da cor cinzenta. Em seguida, um carro atropela a máquina recém-consertada. Até na hora de trabalhar como entregador de um restaurante indiano, ele é explorado e abusado por seus conterrâneos em terra estrangeira. Um dos clientes do restaurante, será — adivinha? — o oficial austríaco que o tinha proibido de trabalhar. Tudo conspira contra Happy.

Ora, existe um tipo muito específico de cinema social, destinado a revelar ao espectador (de classe média, pressupõe-se) as mazelas do mundo. Ao invés de investigar a origem das desigualdades ou apontar para possibilidades de superar injustiças, prefere constatar a existência de mártires do sistema. Por isso, escolhe sujeitos sofredores, humilhados, sobrevivendo em condições precárias, e que, ainda assim, persistem, dia após dia. Esta seria uma belíssima lição de vida, correto?

O diretor avisa que pessoas sofrem, que existe pobreza e injustiça no mundo, que imigrantes são maltratados na Europa. Portanto, caro espectador, pegue leve com os estrangeiros. A vida deles já é horrível o bastante.

Não necessariamente. Projetos que buscam uma conexão emocional com seu público, não-questionadora, ensinam valores e transmitem mensagens prontas, porém se eximem de nos convidar a pensar. Neste caso, o diretor e roteirista Sandeep Kumar avisa que pessoas sofrem, que existe pobreza e injustiça no mundo, que imigrantes são maltratados na Europa, embora vezes desejem apenas acarinhar suas queridas filhinhas. Portanto, caro espectador branco e europeu (a produção é austríaca), pegue leve com os estrangeiros. A existência deles já é horrível o bastante.

Surge deste amálgama de bons sentimentos e paternalismo gentil (banhado em música doce, maniqueísmo e defesa da família patriarcal) uma relação questionável com os temas e personagens. Nossa vítima-exemplar, de nome Happy (o letreiro aparece logo após a imagem de dezenas de imigrantes comprimidos num contêiner escuro) serve como alívio à consciência burguesa, em chave cristã e conciliadora. Não, cidadão, esta culpa não é sua. Afinal, você assiste ao filme e se comove. Torce por ele. Você é uma boa pessoa — as coisas são assim mesmo. “A vida não é justa. Ela sempre prejudica os bons”, sugere um personagem.

Portanto, expiamos nossa responsabilidade através do homem puro e sofredor, tal qual as figuras religiosas nas quais somos encorajados a nos inspirar. Happy é íntegro, gentil, educado, esforçado. Nunca bebe, não procura as mulheres, não rouba nem insulta. A única preocupação, do início ao fim, será agradar os caprichos da filha, e lhe dar tudo aquilo que solicita — o que inclui uma viagem às montanhas. Pode-se falar num pai-coragem, disposto a sacrificar sua saúde mental e física pelo sorriso da garotinha (nascida na Áustria, vale lembrar). Ela não passa fome, nem necessidade, muito pelo contrário. Vive num lar do governo, estuda em boas escolas, tem amigos. 

No entanto, esta figura paterna, próxima dos protagonistas idealizados de A Vida É Bela e À Procura da Felicidade, entrega-se à missão infindável de apaziguar a mente infantil. Enquanto isso, o filme evita mergulhar em temas realmente políticos, capazes de aprofundar o debate a respeito de Happy. Nunca descobrimos de que calvário o protagonista fugiu na Índia. Quem o perseguia, e por quê? Como resistiu durante dez anos na Áustria em situação ilegal? Em que circunstâncias a menina foi colocada em outro lar? Que visão ele possui a respeito do papel do Estado e do governo em seu destino? 

O herói não reclama de nenhuma estrutura. Apenas dobra a carga de trabalho, encontrando (de maneira mágica e inverossímil) um apartamento para receber a filha. A cada conquista deste homem, o filme volta a lhe atribuir tragédias para equilibrar o jogo. Ele conquista a mobilete, mas ela se quebra. Faz um amigo, porém, o rapaz é deportado. Encontra uma confidente romena, que para de recebê-lo. Kumar gosta de converter seu protagonista num Sísifo, arquétipo da causa migratória na Europa, destinado a condensar, numa única narrativa, o calvário de tantos indianos.

“Por que eu não estou morto? Eu não importo para ninguém! Por que viver?”, ele chora. O cineasta o capta quase sempre com a câmera colada ao rosto, em insistentes close-ups, para sublinhar as emoções. O resultado se assemelha a um curioso folhetim televisivo em widescreen, um manual de bons sentimentos que se apropria de uma crise social grave para transmitir valores morais. Felizmente, Sahidur Rahaman está contido e elegante no papel principal. Em contrapartida, basta ver aquilo que o roteiro lhe reserva — o ato máximo de amor-sacrifício ao final — para compreender que o ensinamento não ocorre para ele, mas apesar dele

Happy constitui o alvo de uma parábola, ao invés de sujeito autônomo que domina a narrativa e controla o ponto de vista. Ele é enxergado de fora, enquanto objeto de estudo, na posição do diferente, do outro, do pobre coitado. Alguns espectadores adoram enxergar representações da pobreza de uma posição de superioridade, entretanto, tal imagem está longe de constituir um olhar respeitoso, ou horizontalizado. Happy é constantemente abusado em sua trajetória europeia e, depois, instrumentalizado pela narrativa fictícia que pretende honrá-lo. De boas intenções, o inferno do cinema continua cheio.

Happy (2024)
3
Nota 3/10

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