Holly (2023)

A menina santa

título original (ano)
Holly (2023)
país
Bélgica, Holanda, Luxemburgo, França
gênero
Drama
duração
104 minutos
direção
Fien Troch
elenco
Cathalina Geeraerts, Felix Heremans, Greet Verstraete, Serdi Faki Alici, Els Deceukelier, Maya Louisa Sterkendries, Robby Cleiren
visto em
Mostra de São Paulo 2023

Holly (Cathalina Geeraerts) é uma garota especial. Os personagens deste filme discordam bastante quanto ao grau e às manifestações deste caráter singular, porém concordariam que a adolescente possui características incomuns. Para as meninas de sua turma, é considerada uma bruxa, fedida, em quem têm medo de encostar. Quando prevê uma catástrofe na escola (“Algo muito ruim vai acontecer hoje”, ela avisa ao telefone) passa a ser tratada como médium, ou parcialmente responsável pelo incêndio que vitimiza uma dezena de estudantes.

A menina se desenvolve muito ao longo da trama. A diretora e roteirista Fien Troch parte da personagem misteriosa para conduzi-la aos extremos da bondade e da perversão, passando da condição de vítima àquela de algoz. É interessante que a heroína seja construída sobretudo pelo olhar de terceiros: sabemos apenas de informações trazidas pela professora, pelos colegas de classe, pela mãe, pelo melhor amigo autista. O drama dispensa a verdade sobre Holly, preferindo contrastar as interpretações díspares e violentas a respeito dela.

Logo, o longa-metragem se desenvolve por um ponto de vista externo, repleto de curiosidade e respeito. Evita-se fetichizar a garota e adotar a perspectiva sensacionalista dos vizinhos e colegas. Entretanto, foge-se do olhar exclusivo dela quanto às agressões sofridas. Por isso, conforme a menina adota gestos controversos — ela participa da visita em memória dos mortos no incêndio; passa a lucrar com seus conselhos apaziguadores aos familiares —‚ somos solicitados a reavaliar nossa adesão pela protagonista. 

Existe um componente ferozmente atual na decadência de Holly, uma Justine da pós-modernidade, cujo dom representa uma bênção e uma maldição.

A estratégia é arriscada. Tendemos a nos posicionar junto à menina, até disposições eticamente contestáveis dela favorecerem um distanciamento do espectador. Depois, volta-se à tomada de consciência dela. Todos os personagens, munidos por boas intenções — Holly, a professora Anna, o melhor amigo — praticam gestos de índole duvidosa, seja por ingenuidade ou imprudência. Devemos parar de torcer pela menina? Romper nossa imersão, nossa identificação? Podemos nos posicionar com ela, e contra ela em seguida?

A transição exige um domínio excepcional de ritmos e tons, para que a obra não se transforme num monstro desigual. Ora, Troch preserva a atmosfera de drama, com atuações coesas e maneira de filmar rigidamente coerente, enquanto transita pelo melodrama, o suspense, o realismo fantástico, o realismo social. Ao final, jamais saberemos se a heroína realmente detém poderes, ou se manifestou, a partir da tragédia, o papel de psicóloga e coach, ajudando as pessoas graças ao efeito placebo de suas palavras. A própria estudante duvida de suas capacidades.

No papel principal, Cathalina Geeraerts oferece uma composição cuidadosamente ambígua. A garota pode ser considerada ingênua, doce, hipócrita, manipuladora. A atriz minimiza os gestos e o tom da fala, permitindo que se projete a interpretação de nosta escolha nesta tela (quase) em branco. O mesmo vale para Greet Verstraete, ora excessivamente gentil, ora agressiva, sugerindo certo desespero por trás dos gestos controlados. A inconsequência da menina contrasta de maneira muito eficaz com o aspecto psicorrígido de sua maior amiga e rival neste percurso.

Em última instância, a obra questiona os nossos regimes de crença. Reflete os tempos de hipocondria moral, de cancelamentos e dedos apontados, além de uma vontade muito grande de eleger um inimigo em quem despejar nossas inseguranças e nosso ódio. Existe um componente ferozmente atual na decadência de Holly, uma Justine da pós-modernidade, cujo dom representa uma bênção e uma maldição. Ela enriquece com as habilidades propícias a um mundo sem afeto, ainda que seja punida em mesma medida. Há um componente de Ícaro neste percurso, ainda que, cinematograficamente, o clímax esteja mais próximo de Carrie, a Estranha.

A este propósito, a cineasta flerta constantemente com o cinema de terror. O tema insistente da trilha sonora não faria feio em obras de John Carpenter, por exemplo, lembrando-nos que a bondade quase religiosa da estudante reserva um componente de perversão. Após um primeiro terço amargo, o filme brinca com a possibilidade de oferecer um final feliz pela fé no segundo terço, antes de retornar ao niilismo e à ideia de que o circo dos valores morais não proporcionará uma salvação a ninguém.

Mais do que a competente realização, Holly se sobressai pela engenhosidade do roteiro. Poucos textos conseguem conduzir sua heroína por territórios tão díspares e espinhosos, onde um acontecimento provoca o conflito seguinte, dispensando a intromissão de uma ajuda externa ou artificial (nenhuma doença ou pessoa de fora virá para solucionar o impasse). A menina se afunda sozinha neste calvário. 

Neste sentido, a conclusão em tons cíclicos, ecoando as cenas iniciais, serve de profunda ironia à jovem ajudada, punida, agraciada e maltratada, cena após cena. Poucas sequências seriam mais tragicômicas do que a menina perdida em frente ao supermercado, pedindo desesperadamente para carregar as compras dos clientes, por sentir que, sem efetuar tais gestos, perde seu valor social e sua razão de existir. O que sobra dos cuidadores quando não estão cuidando? Por trás da expressão plácida e benevolente de sua protagonista, Troch nos apresenta um retrato de desespero. 

Holly (2023)
8
Nota 8/10

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