Holly (Cathalina Geeraerts) é uma garota especial. Os personagens deste filme discordam bastante quanto ao grau e às manifestações deste caráter singular, porém concordariam que a adolescente possui características incomuns. Para as meninas de sua turma, é considerada uma bruxa, fedida, em quem têm medo de encostar. Quando prevê uma catástrofe na escola (“Algo muito ruim vai acontecer hoje”, ela avisa ao telefone) passa a ser tratada como médium, ou parcialmente responsável pelo incêndio que vitimiza uma dezena de estudantes.
A menina se desenvolve muito ao longo da trama. A diretora e roteirista Fien Troch parte da personagem misteriosa para conduzi-la aos extremos da bondade e da perversão, passando da condição de vítima àquela de algoz. É interessante que a heroína seja construída sobretudo pelo olhar de terceiros: sabemos apenas de informações trazidas pela professora, pelos colegas de classe, pela mãe, pelo melhor amigo autista. O drama dispensa a verdade sobre Holly, preferindo contrastar as interpretações díspares e violentas a respeito dela.
Logo, o longa-metragem se desenvolve por um ponto de vista externo, repleto de curiosidade e respeito. Evita-se fetichizar a garota e adotar a perspectiva sensacionalista dos vizinhos e colegas. Entretanto, foge-se do olhar exclusivo dela quanto às agressões sofridas. Por isso, conforme a menina adota gestos controversos — ela participa da visita em memória dos mortos no incêndio; passa a lucrar com seus conselhos apaziguadores aos familiares —‚ somos solicitados a reavaliar nossa adesão pela protagonista.
Existe um componente ferozmente atual na decadência de Holly, uma Justine da pós-modernidade, cujo dom representa uma bênção e uma maldição.
A estratégia é arriscada. Tendemos a nos posicionar junto à menina, até disposições eticamente contestáveis dela favorecerem um distanciamento do espectador. Depois, volta-se à tomada de consciência dela. Todos os personagens, munidos por boas intenções — Holly, a professora Anna, o melhor amigo — praticam gestos de índole duvidosa, seja por ingenuidade ou imprudência. Devemos parar de torcer pela menina? Romper nossa imersão, nossa identificação? Podemos nos posicionar com ela, e contra ela em seguida?
A transição exige um domínio excepcional de ritmos e tons, para que a obra não se transforme num monstro desigual. Ora, Troch preserva a atmosfera de drama, com atuações coesas e maneira de filmar rigidamente coerente, enquanto transita pelo melodrama, o suspense, o realismo fantástico, o realismo social. Ao final, jamais saberemos se a heroína realmente detém poderes, ou se manifestou, a partir da tragédia, o papel de psicóloga e coach, ajudando as pessoas graças ao efeito placebo de suas palavras. A própria estudante duvida de suas capacidades.
No papel principal, Cathalina Geeraerts oferece uma composição cuidadosamente ambígua. A garota pode ser considerada ingênua, doce, hipócrita, manipuladora. A atriz minimiza os gestos e o tom da fala, permitindo que se projete a interpretação de nosta escolha nesta tela (quase) em branco. O mesmo vale para Greet Verstraete, ora excessivamente gentil, ora agressiva, sugerindo certo desespero por trás dos gestos controlados. A inconsequência da menina contrasta de maneira muito eficaz com o aspecto psicorrígido de sua maior amiga e rival neste percurso.
Em última instância, a obra questiona os nossos regimes de crença. Reflete os tempos de hipocondria moral, de cancelamentos e dedos apontados, além de uma vontade muito grande de eleger um inimigo em quem despejar nossas inseguranças e nosso ódio. Existe um componente ferozmente atual na decadência de Holly, uma Justine da pós-modernidade, cujo dom representa uma bênção e uma maldição. Ela enriquece com as habilidades propícias a um mundo sem afeto, ainda que seja punida em mesma medida. Há um componente de Ícaro neste percurso, ainda que, cinematograficamente, o clímax esteja mais próximo de Carrie, a Estranha.
A este propósito, a cineasta flerta constantemente com o cinema de terror. O tema insistente da trilha sonora não faria feio em obras de John Carpenter, por exemplo, lembrando-nos que a bondade quase religiosa da estudante reserva um componente de perversão. Após um primeiro terço amargo, o filme brinca com a possibilidade de oferecer um final feliz pela fé no segundo terço, antes de retornar ao niilismo e à ideia de que o circo dos valores morais não proporcionará uma salvação a ninguém.
Mais do que a competente realização, Holly se sobressai pela engenhosidade do roteiro. Poucos textos conseguem conduzir sua heroína por territórios tão díspares e espinhosos, onde um acontecimento provoca o conflito seguinte, dispensando a intromissão de uma ajuda externa ou artificial (nenhuma doença ou pessoa de fora virá para solucionar o impasse). A menina se afunda sozinha neste calvário.
Neste sentido, a conclusão em tons cíclicos, ecoando as cenas iniciais, serve de profunda ironia à jovem ajudada, punida, agraciada e maltratada, cena após cena. Poucas sequências seriam mais tragicômicas do que a menina perdida em frente ao supermercado, pedindo desesperadamente para carregar as compras dos clientes, por sentir que, sem efetuar tais gestos, perde seu valor social e sua razão de existir. O que sobra dos cuidadores quando não estão cuidando? Por trás da expressão plácida e benevolente de sua protagonista, Troch nos apresenta um retrato de desespero.