Holy Spider (2022)

A mulher em julgamento

título original (ANO)
Holy Spider (2022)
país
Dinamarca, Alemanha, Suécia, França
gênero
Suspense
duração
116 minutos
direção
Ali Abbasi
elenco
Zar Amir Ebrahimi, Mehdi Bajestani, Arash Ashtiani, Forouzan Jamshidnejad
visto em
Festival de Toronto 2022

Numa cidade sagrada para o islã persa, prostitutas começam a ser assassinadas. Alguém se passa por cliente, leva-as para casa e depois enforca-as com o próprio lenço utilizado para cobrir os cabelos. Os corpos são desovados em terrenos baldios, e o autor dos crimes faz questão de telefonar à imprensa para avisar da existência de um novo cadáver e reclamar a autoria dos atos. O responsável possui evidente orgulho do que faz, e verifica com regularidade nos jornais locais se suas proezas continuam sendo noticiadas.

Holy Spider propõe uma investigação policial particular. Em primeiro lugar, não existe dificuldade em descobrir a identidade do criminoso: o longa-metragem revela com rapidez o rosto e nome deste homem. Sabemos se tratar de um pequeno operário que, levado pelas ideias do Corão, decide “limpar as ruas da cidade” da atividade considerada pecaminosa. Menos do que alvo, ele se converte em co-protagonista, ganhando tanta atenção quanto as pessoas encarregadas de procurá-lo e detê-lo. Por isso, multiplicam-se as cenas de mulheres capturadas, espancadas e mortas.

A este propósito, o diretor Ali Abbasi não demonstra qualquer pudor em criar sequências violentas. O filme se abre com a morte de uma trabalhadora do sexo, vista com os seios de fora, e depois praticando sexo oral num cliente dentro do carro, em imagem explícita. Em se tratando de uma mulher iraniana, a imagem resulta particularmente forte, como se o cineasta quisesse efetuar um alerta desde o começo a respeito do conteúdo que está por vir. Caso o espectador queira prosseguir, esteja ciente que encontrará exploração explícita dos corpos e do sexo, de maneira consensual ou não.

Em segundo lugar, a investigadora da história não integra a polícia, e sim a imprensa. Trata-se de uma jovem mulher, algo particularmente relevante à trama. Em especial, Rahimi (Zar Amir Ebrahimi) foi afastada do veículo onde trabalhava por supostamente se envolver amorosamente com o chefe, sem ser casada com ele. A profissional explica que apenas denunciou um homem abusivo. Para o resto da sociedade, isso faz dela uma prostituta equivalente às vítimas executadas. Fica claro que, mais cedo ou mais tarde, este alvo simbólico se converterá em alvo físico e concreto. A montagem paralela alterna rigidamente as cenas de Rahimi e do matador Saeed (Mehdi Bajestani), que modo que o clímax coincida com o encontro entre ambos. 

O horror, nesta jornada, se encontra no fato de as mortes não horrorizarem a sociedade. Abbasi questiona a naturalização da barbárie em sociedades pouco democráticas.

Além disso, não existe qualquer dificuldade em encontrar o paradeiro do autor dos casos. O único motivo pelo qual o homem efetua uma dezena de justiçamentos antes de ser detido reside na negligência da polícia, pouco interessada em detê-lo. “O assassino está fazendo o serviço por eles, por que os policiais o deteriam?”, explica a mãe de uma vítima à jornalista. Logo, o prazer do discurso não reside na dificuldade e nas pistas dificílimas, e sim na denúncia de um sistema falido e corrupto, que fecha os olhos a atos de crime e corrupção que lhe sejam convenientes. O texto insiste em dividir a responsabilidade das mortes entre o psicopata e aqueles que o acobertam.

Quando Holy Spider se converte num filme de tribunal, confirma-se a tendência que a narrativa vinha preparando até então. O julgamento do “assassino da aranha”, como é chamado, vai muito além deste caso particular. O tribunal, e o longa-metragem inteiro, por extensão, analisa a autonomia das mulheres; o direito de usufruir de seu corpo como bem entende; a intrusão da moral religiosa nas leis; a tolerância ao feminicídio em nome da moral e dos bons costumes. É relevante, neste caso, que a esposa do réu defenda o marido por seus atos, e que o filho o veja como um exemplo a seguir. O horror, nesta jornada, se encontra no fato de as mortes não horrorizarem a sociedade. Abbasi questiona a naturalização da barbárie em sociedades pouco democráticas.

O autor se posiciona evidentemente ao lado da única figura realmente incomodada com os casos: a protagonista. O filme a reveste de um idealismo e uma coragem inabaláveis, dignos dos heróis virtuosos das produções hollywoodianas. Por isso, a oferta para servir de isca ao matador resulta num gesto previsível, quase inevitável. Zar Amir Ebrahimi efetua um bom trabalho em construir o caráter intempestivo desta profissional, tantas vezes ameaçada, de maneira mais ou menos explícita, de estupro e morte. No entanto, quem realmente se sobressai é Mehdi Bajestani, atenuando a perversidade deste homem para privilegiar um sujeito médio, anônimo, em busca de reconhecimento por sua virilidade e força. Através das mortes, Saeed busca se destacar na multidão e encontrar um sentido para sua existência morna.

Em termos de discurso, o suspense possui uma mensagem clara a respeito dos perigos corridos por mulheres nestas sociedades. O filme possui um caráter muito mais clássico-narrativo do que Border (2018), o projeto fantasista e deslumbrante que Abbasi havia concebido anteriormente. O senso de grotesco, ou de surrealismo desta obra precedente talvez fizessem bem ao projeto de 2022, bastante polido em seus scopes elegantes, trilha sonora pontual e belo trabalho em baixas luzes. Os criadores abraçam um naturalismo perturbador, por se tratar de uma série de crimes bárbaros. Talvez a intenção tenha sido, precisamente, incomodar o espectador pela proximidade do real.

Ora, este aspecto suscita um dos pontos questionáveis do filme: o prazer da violência, ou seja, a possível conivência com o assassino. Holy Spider retrata inúmeros ataques com a ajuda de planos próximos, detalhes nos pés das mulheres mortas, na maquiagem de sangue e machucados nas costas, nas moscas cobrindo os cadáveres putrefatos. O cineasta denuncia o descaso das autoridades e a agressividade destas ações, sem se afastar o suficiente dos mesmos. Em certa medida, transmite ao espectador o espetáculo das mortes, transformando o sofrimento das prostitutas em forma de entretenimento. 

Haveria diversas maneiras de introduzir um distanciamento destas sequências, seja por asco, pela ironia, pelo humor absurdo, pela distância física (a imagem distante dos crimes, a sugestão pelo espaço fora do quadro), por metáforas e sugestões. No entanto, o projeto prefere uma imersão nos crimes, como se o espectador estivesse lá, testemunhando em tempo real as execuções de Saeed — na posição de voyeur ou de cúmplice, como preferirem. A lição final, a respeito do exemplo que fornecemos às crianças e dos padrões de comportamento que elas tendem a repetir, tampouco soa particularmente complexa. 

Apesar de qualidades evidentes de atuação e produção, o resultado se perde numa seriedade sepulcral, no encaminhamento de um drama de tribunal que tem pouco a oferecer ao espectador dentro do subgênero. O texto se prova muito mais forte na associação entre a jornalista e as outras mulheres; e no espelhamento do assassino com os outros homens; do que na maneira cartesiana com que encaminha a trama. Ele oferece um grito de alerta nesta época em que questionamos a eficiência deste tipo de gritos de alerta, mais afeitos à constatação de fatos do que à reflexão via discurso e, principalmente, via estética.

Holy Spider (2022)
6
Nota 6/10

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