Horizonte (2023)

Golpes do destino

título original (ano)
Horizonte (2023)
país
Brasil
gênero
Drama, Romance
duração
108 minutos
direção
Rafael Calomeni
elenco
Suely Franco, Raymundo de Souza, Alexandra Richter, Ana Rosa, Pérola Faria, Ronan Horta, Arthur de Farah, Paulo Vespúcio
visto em
Cinemas

Rui (Raymundo de Souza) descobre que a casa onde sempre viveu será tomada pelo sobrinho. Passada a morte do irmão e antigo proprietário do imóvel, o despótico herdeiro decide ocupar a casa central, relegando o senhor idoso a uma edícula apertada nos fundos. E que este não converse com os familiares, em hipótese nenhuma. Depois, Rui é avisado que outro sobrinho sacou dinheiro do falecido, poucos dias antes de morrer. Em seguida, recebe pela rádio a notícia de um loteamento de casas prontas e gratuitas, reservadas aos idosos de Belo Horizonte.

Horizonte é construído a partir destes golpes do acaso. Os protagonistas tomam poucas atitudes por si próprios, limitando-se a reagir às mudanças bruscas que ocorrem em seu entorno. Talvez por este motivo, soem perturbadoramente passivos: o homem é enxotado de sua casa, porém apenas acata com a bravura do recém-chegado. O sobrinho faz o mesmo. Ambos poderiam clamar por uma parte da herança do falecido, e supostamente conhecem seus direitos. “Mas quem manda aqui sou eu”, grita o outro, cabra macho. Os dois baixam a cabeça e se mudam. A vida é assim, não? 

Resta uma estranha impressão de que algumas estas brigas sanguíneas poderiam ser resolvidas caso os personagens manifestassem mínima verve ou autonomia. O roteiro chega ao cúmulo de imaginar uma festinha de noivado, no quintal de casa, onde todos ficam preocupadíssimos com a ausência do homem idoso, cuja presença nem era desejada. Não poderiam apenas inventar uma desculpa para a ausência do familiar? De modo algum: a direção transforma o incidente numa catástrofe de proporções imensas.

Uma obra excessivamente ingênua, tanto em termos humanos quanto cinematográficos.

A propensão ao melodrama e aos exageros de tons domina igualmente os diálogos. Os personagens falam pouco, mas quando abrem a boca, dizem tudo aquilo que seus interlocutores (e o espectador) precisam conhecer: “Você acaba de enterrar seu pai, você não vê seu filho há quatorze anos!”, “Já tem quatorze anos que eu saí daqui. Agora ficou só o senhor”, “A senhora é sozinha, sem filhos, e vive num asilo que foi fechado”. Por que raios estas figuras dizem uma à outra dados bem conhecidos pelos dois? A artificialidade incomoda bastante no drama de pretensões naturalistas.

No entanto, o diretor Rafael Calomeni e o roteirista Dostoiewski Champangnatte gostam de criar dilemas apenas para proporcionar uma solução, igualmente rocambolesca. Rui acaba de ser rejeitado pelos familiares? Sem problema, basta ligar o rádio e a primeira emissão afirma, literalmente, “Você, na terceira idade, busca um lar”? Uma conversa rápida depois, poucos documentos apresentados, e está entregue sua casa gratuita! Imagina-se o programa social mais eficiente, e também menos verossímil, da história das políticas públicas.

Enquanto isso, o longa-metragem apresenta dificuldades em trabalhar tempos e espaços. Na impossibilidade de expressar a passagem das ações, ou o desgasta das consequências, a montagem simplesmente acrescenta um “Dias depois…” na tela, em três oportunidades. Caso contrário, talvez o espectador não percebesse o decorrer do tempo. Rui jamais explora as ruas análogas deste bairro de idosos, e investiga pouco do mundo para além das duas casas onde é confinado. 

Os familiares, essenciais no momento inicial da trama, serão sumariamente abandonados em seguida, quando o roteiro confere protagonismo único a Rui. Entram em cena novos dilemas, diferentes em termos de tom e ritmo, de tudo o que antecedeu. De repente, o homem se apaixona pela única vizinha do bairro, passando dia e noite à janela, infantil e romântico, em espera de uma resposta da donzela enfezada. O pertencimento e o abandono serão superados pela perspectiva de se apaixonar novamente.

Horizonte está repleto de boas intenções. Deseja apresentar a solidão após os 70 anos, a rejeição familiar, a possibilidade de reconfiguração social para além dos núcleos tradicionais. Conta com atores dedicados, especialmente Raymundo de Souza e Alexandra Richter, esta última, a mais coesa em cena durante todas as suas aparições. Os autores imaginam um drama romântico adulto, sem alívios cômicos fáceis, e baseado num otimismo quase fabular quanto à possibilidade de se reinventar em qualquer fase da vida.

No entanto, parte de seus méritos representam igualmente as suas fragilidades. Trata-se de uma obra excessivamente ingênua, tanto em termos humanos quanto cinematográficos. O cineasta concebe um conto de fadas, transformando o homem idoso em gato borralheiro, a quem a fada madrinha oferece uma casa nova e uma princesa encantada com quem permanecer pelo resto dos seus dias. Os problemas somem, posto que o destino se encarrega de ajustar todos os dilemas num passe de mágica. Fim.

Ora, quanto mais o roteiro, a direção e a montagem adocicam os males e intervêm no naturalismo, menos o resultado se sustenta. O projeto nunca decide entre um filme de observação, mais intimista e delicado, e a busca por uma autoria vaidosa. Ele começa com um longuíssimo plano-sequência nos fundos da casa (que não ajuda em nada na dinâmica estática das pessoas sentadas à mesa) e depois inventa zoom-in e zoom-out consecutivos, na mesma cena, rumo ao protagonista e sua melhor amiga, sentados num banco. O que deseja esta câmera histriônica?

Os atores se perdem nesta indefinição de tons e propósitos. Raymundo de Souza está muito bem na interação com Ana Rosa durante o terço final, porém soa insuficientemente dirigido no plano-sequência de abertura, quando permanece catatônico à mesa. Arthur D. Farah transparece a indecisão entre construir um rapaz doce, porém afetuoso, ou um sujeito incapaz de perceber a malícia ao redor. Já Ronan Horta executa (por iniciativa própria ou a demando do diretor) uma composição maléfica, beirando o cartunesco e o caricatural.

Por fim, é difícil sustentar pelo filme a mesma condescendência e paternalismo com que o longa-metragem trata seus personagens. Horizonte se prova tão gentil e bem-intencionado quanto frágil enquanto posicionamento político e artístico. Confere papéis de destaque a atores que certamente merecem nossa atenção. No entanto, o afeto incondicional e a crença cega numa melhoria do estado das coisas (graças aos ajustes um tanto abruptos na ordem das coisas) lhe servem de méritos agridoces, inocentes demais um projeto do século XXI.

Horizonte (2023)
3
Nota 3/10

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