Il Buco é um filme construído a partir de oposições. Nos anos 1960, no norte da Itália, a mídia dava ampla cobertura à construção de um gigantesco arranha-céu empresarial. No sul do país, um grupo de jovens espeleologistas decidiu investigar uma caverna desconhecida em Pollino, e acabou descobrindo um espaço de 687 metros de profundidade — o terceiro mais profundo do mundo, pelos registros do período. Mas o fato não foi registrado, e permaneceu secreto.
Outros contrapontos permitem à narrativa avançar. Além de norte e sul, em cima e embaixo, elevações e profundezas, o cineasta Michelangelo Frammartino decide friccionar o individual e o particular. Enquanto o pequeno vilarejo próximo ao abismo de Bifurto ignora a expedição arriscada em seus paradeiros, um homem idoso e solitário serve de testemunha silenciosa aos fatos. Ou seja, crianças brincam de bola perto do buraco aberto no chão, porém somente o camponês compreende a complexidade do que acontece na expedição, dia após dia.
O longa-metragem trata de aproximar as linguagens típicas do documentário e da ficção, como de costume nos trabalhos do diretor. Por um lado, a observação plácida da natureza, a ausência quase completa de diálogos e a mínima intervenção no meio sugere um filme documental, como se a câmera tivesse recebido a autorização de acompanhar uma investigação real da caverna. Por outro lado, nota-se um grau de controle de enquadramentos, luz e sons que seria impossível a acontecimentos espontâneos.
O drama posiciona sua câmera no fundo da caverna quando um papel em chamas é jogado do alto, e também observa a bola das crianças passar pela abertura, enquanto se encontra nas partes mais baixas da abertura. A câmera está parada, esperando personagens encontrarem o senhor idoso caído no chão, e flagra o instante exato em que uma pilha de documentos é levada pelo vento. Há domínio rígido das ações, com a equipe pronta para captá-las na melhor configuração possível de imagem e som.
Em outras palavras, estritamente falando, encontramo-nos diante de uma ficção fascinada pela impressão do real. O dispositivo pode não modificar os arredores para construir sua narrativa (afinal, depende-se dos contornos e meandros da caverna real), porém tampouco se torna refém do que a natureza oferece ao primeiro olhar. Cada imagem foi estudada e pensada, e aos poucos, uma narrativa surge com a aproximação entre o velho observador e os jovens espeleólogos. Gradativamente, desenha-se uma narrativa linear.
Um filme silencioso, voluntariamente lento, voltado ao prazer de observar imagens e refletir, de maneira quase filosófica, às suas ponderações.
Uma leitura imediata de Il Buco poderia felicitá-lo apenas pela dificuldade do empreendimento. É comum o olhar cinéfilo valorizar aquilo que lhe parece custoso, improvável, árduo de conseguir. Ora, o mergulho da câmera numa gruta estreita de quase 700 metros de profundidade soa arriscado, permitindo ao autor obter imagens inéditas de uma beleza excepcional. Os criadores poderiam se contentar com a própria iniciativa, carregando os méritos da façanha. Felizmente, Frammartino vai além da singularidade do dispositivo.
Neste caso, é evidente que a exploração da caverna se insere num discurso mais amplo acerca dos ciclos de vida e morte, das construções humanas em oposição às belezas naturais, e da noção de patrimônio desenvolvida pelas sociedades contemporâneas. A montagem paralela, associando a piora da saúde do homem idoso com a descoberta do fundo da caverna traz significados por si própria: quando a jornada dos exploradores chegar ao fim, aquela do observador também chegará.
Em paralelo, o projeto mergulha na lacuna separando os objetos de estudo de sua representação. A narrativa está repleta de desenhos do abismo de Bifurto, de sugestões de sua composição inteira através de sons (pedras são jogadas no vazio), e da construção de um mapa permitindo compreender exatamente suas curvas e espaços internos. Em sua essência, a apreensão cinematográfica deste local possui um distanciamento em relação à caverna real — algo ressaltado pelos fragmentos de jornal queimados na parte interna. Frammartino insiste que nunca vemos a caverna, apenas uma representação desta. Não por acaso, uma vez terminado o mapa dos espeleólogos, o filme também se encerra.
Il Buco contribui a pensar na imensa diferença entre a linguagem documental de viés artístico, e aquela de vertente jornalística. É comum que cineastas transformem sua relação com o tema estudado numa reportagem, caso em que se contentam em registrar o tema, informando o espectador de sua existência. Muitas entrevistas com criadores trazem explicações do tipo “Era importante que o público soubesse da existência deste fato”. Nestes casos, o valor informativo se sobrepõe ao ponto de vista do diretor e à composição autoral.
Ora, o projeto italiano demonstra profundo rigor estético e uma perspectiva pessoal do diretor. Ele atribui uma linguagem coesa e idêntica à caverna, à rotina dos habitantes e à morte iminente do homem idoso. Os únicos letreiros explicativos surgem na cartela final, evitando condicionar o olhar do espectador ao viés factual. Antes disso, nem sequer sabemos onde os personagens se encontram, em qual data, que nomes possuem e qual conquista tiveram. Estes dados e a “inspiração em fatos” surgem a posteriori, para acrescentar ao significado ao invés de dominá-lo.
Resta felicitar os distribuidores brasileiros por trazerem ao circuito comercial uma obra tão radical, e rara entre os títulos disponíveis nas salas de cinema. Há uma infinidade de propostas dentro do dito “cinema de autor”, e aquelas de contornos mais convencionais costumam ser privilegiadas no acesso à exibição. Um filme silencioso, voluntariamente lento, voltado ao prazer de observar imagens e refletir, de maneira quase filosófica, às suas ponderações, constitui uma preciosidade ao público brasileiro. Acreditemos que ainda existam olhos dispostos a esta experiência estética, oposta aos tempos velozes de redes sociais, e extremamente política em sua crença num cinema de sensações.