Incompatível com a Vida (2023)

Diário de uma perda

título original (ano)
Incompatível com a Vida (2023)
país
Brasil
Linguagem
Documentário
duração
93 minutos
direção
Eliza Capai
visto em
Festival de Vitória 2023

A diretora Eliza Capai engravidou no início da pandemia e, feliz com a notícia, decidiu registrar o progresso da gestação. Fez planos, criou expectativas. No entanto, as ultrassonografias começaram a sugerir uma má-formação do bebê. Novos testes confirmaram que o pequeno Manuel teria, nas palavras da mãe, “um buraco na cabeça”. No jargão médico, seria “incompatível com a vida”. Começa então a luta para poder, legalmente, abortar o filho natimorto. Enquanto isso, sofre a angústia de sentir o crescimento, dentro de si, do filho que não poderá viver.

O documentário parte de um sofrimento profundamente pessoal. A cineasta expõe seu corpo, seu choro, seus gritos e sua nudez. Entretanto, não se sente confortável limitando a narrativa à experiência pessoal, razão pela qual parte em busca de outras mulheres ou casais que atravessaram episódios semelhantes. Ela faz questão de conversar com pessoas progressistas e conservadoras, de classe média ou em vulnerabilidade social, brancas e negras. Sugere-se que tal calvário seria tristemente democrático, podendo atingir a todas.

O roteiro inclusive se abre com a voz da autora, explicando aos entrevistados suas intenções, a metodologia do filme, seu histórico com a perda do bebê. O trecho serve a legitimar a abordagem, conferindo-lhe “lugar de fala”, e também a situar o espectador quanto às suas motivações. O filme adota diversas precauções para que suas imagens e escolhas sejam compreendidas de antemão, antecipando-se e blindando-se contra possíveis críticas. Reflete, desta maneira, esta época de dedos apontados, cancelamentos e polêmicas instantâneas em redes sociais — a hipertrofia moral de que falam os pensadores contemporâneos.

Incompatível com a Vida produz sensações incômodas, e destinadas a este efeito. Ainda mais perturbadoras são as sequências de intimidade “ao vivo” e supostamente espontânea da cineasta com o ex-companheiro.

Entre estes mecanismos de autoproteção, o mais curioso se situa no início, quando surge o letreiro de “alerta de gatilho”. Na mesma noite de abertura do Festival de Vitória, um curta-metragem capixaba ostentava aviso semelhante. Por mais generosa e cuidadosa que seja esta aproximação, ela acaba tomando para si uma função que não diz respeito ao cinema. É triste que algumas pessoas se sintam perturbadas com determinados temas, devido a vivências pessoais. No entanto, não é responsabilidade da arte se desculpar ou prevenir pela dor que possa suscitar no interlocutor.

Por mais cruel que seja esta afirmação, cabe à pessoa em estado de sofrimento psíquico lidar com seus traumas, ao invés da obra de arte destinada a refletir sobre tais temas. É claro que algumas pessoas terão mais recursos, conhecimentos e acesso a ferramentas para a gestão de crises (terapia, rede de apoio, etc.). No entanto, esta desigualdade não significa que o cinema precisaria se prevenir contra o gatilho de terceiros — qualquer coisa, a priori, pode constituir um gatilho para alguém. Há algo tão perigoso quanto caridoso neste precedente, quando o cinema assume uma culpa que nunca foi sua. A partir deste raciocínio abraçado pela esquerda, as vozes conservadoras podem, de fato, sugerir que os filmes doutrinam, provocam, ensinam errado. Estamos dando munição aos canhões da direita.

De qualquer modo, Capai apresenta uma escuta empática às narrativas alheias. Presencia em silêncio as mulheres falarem de seus bebês natimortos, mal formados, da pressão religiosa para não abortarem, da culpa pela gestação malsucedida, dos danos causados aos relacionamentos amorosos. A proximidade da cineasta com estas mulheres permite que se abram tal qual uma roda de conversa terapêutica. Buscam se identificar umas nas outras, garantindo que o espelhamento da dor as deixe menos sozinhas. 

A crença no poder reparador da palavra desperta interesse quanto ao conteúdo imagético escolhido para acompanhá-la. A autora investe em cenas simples, capazes de representar a solidão destas mulheres. Constrói inúmeras sequências com as personagens embaixo do chuveiro, perambulando por cozinhas escuras, refletindo diante de uma paisagem nublada ou chuvosa, ou próximas a janelas e sacadas. Sugere, em alguns destes instantes, o pensamento suicida através da ilustração da figura saltando a janela.

Incompatível com a Vida produz sensações incômodas, e destinadas a este efeito. Capai demora a mencionar o seu tema de estudo, mas uma vez elencadas a questão do luto e do aborto, passa a expor a si própria com mais ferocidade do que faz a qualquer uma das mulheres entrevistadas. Ela demonstra maior cuidado com as feridas das personagens do que com as suas, conforme atestam a cena dos gritos durante as contrações (para o parto do bebê natimorto) e a imagem próxima do feto abortado.

Ainda mais perturbadoras, no entanto, são as sequências de intimidade “ao vivo” e supostamente espontânea da cineasta com o ex-companheiro. Filma-se Capai nua, chorando na cama, além do instante exato em que ambos se separam. Ora, havia uma câmera devidamente enquadrada, na hora em que disseram o último adeus? Ou reproduziram o instante tão íntimo ao dispositivo, de modo ficcionalizado? A presença da câmera em instantes agudos de crise, e sua posterior exibição ao espectador, resultam numa impressão de inesperada vaidade ou instrumentalização da própria dor para fins didáticos-artísticos. 

Caso a cena tenha sido, de fato, totalmente espontânea, soa cruel pela predileção em filmar a profunda fragilidade alheia ao invés de ajudar a mulher despedaçada à frente do dispositivo. Caso tenha sido reproduzida para o filme, resulta igualmente incômoda pela intenção de simular uma espontaneidade ao invés de representá-la. De qualquer modo, o cinema se coloca acima da subjetividade das pessoas em cena, como se fosse mais importante obter cenas potentes do que respeitar a intimidade dos retratados. 

É claro que, em se tratando da autoexposição da diretora, ela determina os limites que lhe convém. Não houve exploração de terceiros, apenas uma abertura em partes honesta, em partes fetichista, de si mesma. Em contrapartida, resta a questão acerca das potencialidades do cinema em representar pela ausência, pela sugestão, pela poesia, pela metáfora. Pode-se indicar uma dor, aludir à perda, sem chegar à imagem literal de um feto abortado ou do corpo gritando. O caráter explícito visa a política do confronto e ddo choque, ao invés da reflexão. Quanto mais se apela aos sentimentos, menos se oferece à reflexão.

Estes instantes não retiram, no entanto, os méritos de um documentário marcado por excelente montagem, capaz de alternar de modo equilibrado entre várias mulheres, costurando a jornada de Capai em segundo plano. A criadora enxerga os casos narrados enquanto sintomas de um Brasil ultraconservador: o caos da gestão Bolsonaro e os absurdos promovidos por Damares Alves servem para evocar um tempo desolador aos bebês que chegam. A criadora discute aborto, luto, autonomia feminina e promove um convite à empatia, através de uma galeria vasta e muito articulada de mulheres. Talvez às vezes penda ao sensacionalismo, embora, em geral, respeite as barreiras da intimidade (alheia, pelo menos).

Incompatível com a Vida (2023)
7
Nota 7/10

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