Há muitos motivos para comemorar a abordagem das afetividades em Joyland (2022). Em primeiro lugar, o filme paquistanês apresenta a jornada da dançarina transexual Biba (Alina Khan), com foco em seus afetos, sua liderança no ambiente de trabalho, o temperamento forte e a capacidade de inserir socialmente. Ela nunca será enxergada enquanto vítima sofredora, nem como mulher profundamente resistente. A artista possui qualidades e defeitos, virtudes e vícios, como qualquer um. Instaura-se um olhar mais horizontalizado do que na maior parte de dramas a respeito de personagens trans.
Além disso, o jovem Haider (Ali Junejo), que se apaixona pela nova chefe, também é abordado com carinho, desde as suas falhas enquanto chefe de família patriarcal, até os eventuais deslizes cometidos no relacionamento amoroso com Biba. O diretor Saim Sadiq nunca se preocupa em rotular a afetividade deste homem que se vê, pela primeira vez, apaixonado por uma pessoa não-cisgênero, sendo questionado por sua sexualidade por todos ao redor. O texto se esforça para compreender os pontos de vista de uma dezena de membros da família Rana.
O roteiro cresce muito quando coloca em perspectiva os amores de Haider, Biba, e também da esposa Mumtaz (a excelente Rasti Farooq), a mãe idosa do protagonista, o pai conservador, a cunhada de viés relativamente progressista, etc. Sem sobressaltos, consegue intercalar os amores, desejos e motivações de pelo menos sete personagens, demonstrando a pressão conservadora e religiosa. Ao invés de representarem casos excepcionais, eles se tornam reflexo de uma sociedade mais ampla, regida por regras impostas a todos. O filme funciona, em primeiro lugar, enquanto panorama de um país dividido entre a tradição e a modernidade.
Em contrapartida, alguns fatores despertam certa preocupação, no sentido de que a representação da sexualidade e do gênero seja atenuada para atingir um público mais amplo, dentro de uma configuração clássica e palatável. Joyland abraça o melodrama, valorizando a angústia de Haider e Biba, lidando de maneiras opostas com a violência imposta pelas famílias e a comunidade. Ela extravasa, briga, e aparece na cena inicial coberta de sangue. Ele internaliza, sofre em segredo, enquanto mantém os olhos arregalados, expressando conformismo e pesar. Sua representação sexual será, adiante, aquela de um homem passivo.
A homenagem ou ternura pelos personagens passa pela piedade, pelo reconhecimento de que o outro (a diferença, o marginalizado) sofre muito.
Em outras palavras, a homenagem ou ternura pelos personagens passa pela piedade, pelo reconhecimento de que o outro (a diferença, o marginalizado) sofre muito. O espectador é convidado a se entristecer pelas figuras, pela situação geral, pelo amor impossível em moldes próximos da tragédia (um Romeu e Julieta em versão trans e paquistanesa, digamos). Não por acaso, a única maneira encontrada de representar a seriedade das ameaças reside na morte ao final, como convém às narrativas de precaução (cautionary tales). Aqui, aqueles que sonham e amam de maneira pura precisam ser sacrificados no final — ou então as pessoas próximas deles.
Além disso, a personagem trans jamais se eleva à condição de personagem principal. Ela será observada, em toda a trama, pelos olhares de terceiros: o amor submisso de Haider, o deboche dos dançarinos da boate, a exploração financeira do chefe, o ódio da família conversadora. Conforme o filme expande seu escopo aos dilemas de novos personagens, Biba é a primeira ser deixada de lado, e a narrativa encontra dificuldades de reinseri-la no terço final, quando a tragédia ocupa o filme (vide a sequência tímida do velório). Em outras palavras, ela nunca domina o ponto de vista, nem o discurso da obra. Haider tampouco terá chances concretas ou simbólicas de se emancipar.
É possível enxergar o resultado enquanto lamento de uma situação desfavorável, diante da qual o cineasta se priva de tecer reflexões para além da constatação do problema. A jornada dos protagonistas constitui a metonímia de um conflito, ao invés de uma proposta de debate. Esta leitura dispensa teses a respeito da origem desta configuração sociopolítica, das transformações ao longo do tempo, das possíveis maneiras de superação, ou da responsabilidade do Estado e instituições em sua manutenção. O discurso se volta mais à sensibilização da plateia conservadora do que aos eventuais espectadores gays, trans e outros no país.
Isso não retira de Joyland uma capacidade ímpar de retratar a delicadeza das relações humanas, através das cenas naturalistas e muito bem dirigidas dentro da família Ranas. Sadiq possui o talento de captar belas cenas dos casais na cama, no banheiro, trocando pequenas confidências ou desempenhando tarefas cotidianas. Em paralelo, apresenta Biba em seu dormitório, cercada por objetos, cenários e luzes cuidadosamente pensados para representá-la num misto de idealização e distanciamento (pois vista pelo olhar apaixonado do protagonista).
O drama possui bom ritmo, articulando sem tempos mortos as cenas de humor e leveza com outras mais graves. Adere, portanto, ao estilo agridoce dos feel good movies voltados à dor de terceiros — para o bem e para o mal. Sadiq embala sua fábula em cores agradáveis, enquadramentos e luzes aprazíveis, trilha sonora para acompanhar sentimentos. Nem a montagem, nem os enquadramentos buscam qualquer forma de fricção, provocação ou perturbação dos sentidos. A obra busca constituir uma experiência popular e terna, apesar da violência dos temas abordados. Questione-se ou não o valor desta abordagem, ela se mostra bem-sucedida em suas ambições cinematográficas.