Ao definir o tema norteador de sua curadoria em 2025, a Mostra de Cinema de Tiradentes optou por uma questão aberta: “Que cinema é esse?”. O texto de justificativa explica que não seriam escolhidos os “melhores filmes” (critério vago e inviável para qualquer recorte curatorial), mas aqueles capazes de tensionar a definição do que constitui cinema e arte, a partir de distintos formatos e linguagens. Neste sentido, a inclusão de Kickflip na 28ª edição se legitima plenamente. Trata-se de um filme fértil para este tipo de discussão.
Em tela, dois amigos fazem brincadeiras. Com suas câmeras caseiras, comem hambúrgueres na praça de alimentação do shopping, filmam as manobras de skate e os desafios de quem coloca mais marshmallows na boca. Resumem-se a essas atividades cotidianas, longe de qualquer preocupação, obrigação ou atividade pré-delimitada. Neste mundo de pouquíssimos adultos, apenas a mãe de um deles — uma mulher obcecada por armas de fogo — dá as caras. No entanto, a interação com o filho será mínima. Estaríamos na década de 1990, a julgar pela tecnologia disponível? Não é certo. Entre o Brasil e os Estados Unidos, pela intromissão do inglês e pelas lojas mostradas? Talvez.
É possível pensar em todas as vertentes que Kickflip abre aos pesquisadores em cinema, psicologia e ciências sociais. Diversas análises são possíveis a partir do filme. Para citar algumas: 1. A onda do cinema-selfie, onde os personagens filmam a si próprios, valorizando o aspecto caseiro e amador; 2. A democratização do acesso à produção audiovisual por meio dos telefones celulares, algo presente em pelo menos três outros projetos de Tiradentes até o momento; 3. A melancolia de uma juventude sem perspectivas, buscando simulacros de afeto nas redes sociais e no mundo virtual.
Qual é o mínimo denominador comum para uma obra audiovisual ser considerada cinema? Para constituir mais do que um vídeo banal de Internet, uma traquinagem entre amigos? Ou então, numa proposta generosa, tudo seria cinema, contanto que haja disposição a enxergá-lo assim?
Quem quiser ir ainda mais longe, pode se arriscar em outras leituras análogas. 4. Qual o mínimo denominador comum para um vídeo ser considerado arte (ou cinema) no século XXI? Vídeos caseiros, descompromissados, sem o intuito inicial de constituírem arte, podem ser retomados por este prisma, e valorizados como tal? 5. De que forma o retrato da juventude contemporânea se diferente dos skatistas norte-americanos de Larry Clark e Gus Van Sant, algumas décadas atrás, quando a rebeldia se aliava à violência social? 6. Como estabelecer o ponto de vista (além de seu impacto estético e narrativo) quando uma câmera filma outras câmeras? E assim por diante.
Por mais frutíferas que estas e outras propostas possam aparentar, elas começam a soar o alarme da interpretação excessiva. Trata-se da tendência a nos apropriar de um filme enquanto ponto de partida para tópicos que já nos interessavam muito antes da obra, para além dela, e que dificilmente são explorados pelo discurso e narrativa do próprio filme. Em outras palavras, Kickflip renderia uma bela leitura sintomática para pesquisadores, porém as vias citadas acima soam despropositadas numa crítica do projeto em si — levando em consideração os elementos contidos nele, propostos por ele, ao invés das ideias externas que ele venha a fomentar.
Isso porque o longa-metragem evita intelectualizar ou racionalizar seus procedimentos. Não se trata de um filme sobre a juventude, elaborado com certo distanciamento, mas de um filme jovem, feito por estes mesmos jovens, mais preocupados em se divertir em frente às câmeras. A seleção na prestigiosa Mostra de Tiradentes nos leva a considerá-lo com olhos instigados e generosos, assim como ocorre aos quadros de algum pintor obscuro, quando inseridos numa galeria de renome. Tendemos a vê-lo como arte refinada, posto que foi colocado num local destinado a este grupo de criações.
No entanto, a experiência em tela se limita às longuíssimas cenas de skate, ao marshmallow ingerido, regurgitado, ingerido de novo, regurgitado mais uma vez; aos vlogs dos garotos; à solidão dos meninos nos chats online (“O que você está fazendo?” . “Estou fedendo aqui”). Os primeiros comentários a respeito de Kickflip nas redes sociais comemoram a raridade de testemunhar moleques falando aleatoriedades dentro de uma sala de cinema de prestígio, num grande festival de cinema. “Esses cara fizeram um cinema lotado rir do desafio do Chubby Bunny no ano de 2025, se isso não é uma mitada cinematográfica eu não sei o que é. Longe de ser perfeito, mas é o tipo de filme que o fato dele ser feito e divulgado e apreciado por centenas de pessoas já é revolucionário em si”, afirma Pedro Sallomé.
Em outras palavras, paira a impressão de que o projeto se valoriza enquanto happening, provocação nos tensionamentos entre arte e entretenimento, entre o erudito e o popular. O valor da sessão estaria em sua própria existência — ou seja, na presença de uma equipe bastante jovem na tela do cinema, e na projeção grande e cuidadosa de um marshmallow babado. A curadoria de Tiradentes tem privilegiado a experiência do choque e da provocação, fomentando mais debates extrafílmicos do que a respeito de estética e narrativa, por exemplo (vide a inclusão de A Primavera).
O fato de a liberdade e espontaneidade deste “filme de skate” se aproximar de uma aleatoriedade do uso da linguagem não parece incomodar. A utilização dos recursos cinematográficos se mostra limitada, caseira, tosca, amadora — e perfeitamente ciente disso, mesmo orgulhosa em sê-lo. Os curadores também demonstram certo orgulho ao selecionar tal obra, como se a rebeldia dos adolescentes constituísse, por extensão, uma rebeldia dos organizadores, devidamente baseados na premissa norteadora “Que cinema é esse?”.
A programação diária se construiu (conscientemente ou não) de modo que a estética do cinema faça-você-mesmo se destituísse progressivamente de uma aparência ostensivamente artística. Isso porque Uma Montanha em Movimento, de Caetano Gotardo, trazia o cineasta filmando a si próprio, através de um telefone celular, porém com evidentes pretensões artísticas e discussões a respeito da estética queer. Em seguida, Um Minuto é uma Eternidade para Quem Está Sofrendo, de Fábio Rogério e Wesley Pereira de Castro, utilizava a autoimagem com celulares em formato ainda mais caseiro, cômico e descompromissado, típico dos tempos de redes sociais. No entanto, era evidente a preocupação dos autores em traçar um retrato da saúde mental do protagonista.
Agora, mesmo o verniz filosófico ou questionador se perde. Kicklip se apropria da linguagem caseira enquanto meio e finalidade — a proposta se encerra em si mesma. Talvez a exibição de uma filmagem da festa de casamento dos pais, ou a brincadeira de colegas de trabalho numa despedida de solteiro provocassem efeito semelhante. Enquanto espectadores comemoram a “lacração” de ter um filme em moldes MTV-Jackass em Tiradentes, ninguém discute o retrato apressado da personagem da mãe, a representação irresponsável do suicídio ao vivo enquanto brincadeira, ou a imagem inconsequente da solidão e da depressão queer.
Quanto mais esvaziado de pretensões sociais (os adolescentes nunca se comunicam com a comunidade ao redor), e despojado de questionamentos por parte dos autores, mais provocadora a obra soa em sua existência e seleção na mostra de cinema. Em consequência, quanto menos facilmente identificável ele se tornar, enquanto gesto cinematográfico, melhor seria para o recorte da 28ª edição, que investiga as bordas da definição artística. Afinal, qual é o mínimo denominador comum para uma obra audiovisual ser considerada cinema? Para constituir mais do que um vídeo banal de Internet, uma traquinagem entre amigos? Ou então, numa proposta generosa, tudo seria cinema — ou teria tendência a se tornar cinema — contanto que haja disposição a enxergá-lo assim? Enquanto isso, na tela, um jovem faz manobras de skate.