O tom deste filme constitui o primeiro elemento que salta aos olhos de um espectador ocidental. No indiano Kill: O Massacre no Trem, cada ação é sublinhada à enésima potência, em teor tão intenso que beira o paródico. Não existe hesitação, sutileza ou subentendido, pelo contrário: ama-se à morte; detesta-se o adversário com uma perversidade maníaca; chora-se com um desespero profundo. Durante 105 minutos, os personagens se encontram em intensidade máxima de qualquer sentimento experimentado: amor, raiva, tristeza, remorso.
Ao invés de apresentar os relacionamentos do herói Amrit Rathod (Lakshya) em casa ou no trabalho, por exemplo, o diretor Nikhil Nagesh Bhat prefere trazer a sociedade inteira a bordo do veículo, onde se desenvolve a quase totalidade da trama. Estão presentes os policiais, os militares, os bandidos, as famílias pobres e os milionários, separados por uma porta destrancada entre vagões. É conveniente ao roteiro que todos os afetos e desafetos se encontrem presos sob trilhos em movimento, para que se resolvam (positiva ou negativamente) sem possibilidade de escapatória.
Além disso, a narrativa divide a experiência em duas partes simétricas — o título, inclusive, surge na tela durante após 45 minutos. O primeiro segmento constitui um romance de ação convencional: o herói íntegro e musculoso deseja uma bela moça prometida a outro rapaz. Quando descobre ladrões no trem, decide lutar contra 40 homens armados, apostando na força de seus braços. A mocinha se aflige, torce pelo amor de sua vida. Coloca a mão no ventre, que um dia há de gerar os frutos desta união. Mais convencional e heteronormativo do que isso, impossível.
O resultado satisfaz bastante no que diz respeito ao estímulo imediato da violência. As coreografias impressionam. Em contrapartida, por trás das extravagâncias da câmera, resta um discurso retrógrado a respeito do gênero, da moral e da honra.
No entanto, o longa-metragem surpreende positivamente neste ponto de virada central. Os planos de Amrit não correm como ele esperaria. A recompensa emocional prometida (união do casal, casamento, filhos) é frustrada em definitivo. Então, o projeto de viés hollywoodiano se converte num terror, muito mais sangrento do que a média das produções no circuito comercial. O herói deseja se vingar, com requintes de crueldade, como raramente ocorre a tipos justos e emocionalmente contidos. Ele esmaga crânios utilizando extintores de incêndio, perfura os olhos dos adversários, pendura cadáveres no corredor. O mocinho, de certo modo, se torna o monstro.
A moralidade deste conto poderia ser questionada. Devemos permanecer ao lado dele, torcendo pelo ícone da virilidade, quando passa a matar por prazer? Seria digno nos solidarizar com o sujeito que continua desmembrando os corpos, mesmo após a morte dos adversários? A direção nunca convida o espectador a questionar a justiça de seus atos, abraçando a tese da legitimidade da violência. Ele mata com raiva excessiva porque foi frustrado em sua paixão excessiva. Olho por olho, dente por dente. Na ausência de sua querida, recorre à selvageria incontrolável. Aos olhos de Bhat, esta constitui a prova máxima de amor.
Resta então uma configuração particular para o universo de ação. Sim, há socos, pontapés, facadas e os demais golpes esperados do gênero. No entanto, a direção se desafia ao estabelecer como palco central o corredor estreito do trem cenográfico. Por mais que os espaços sejam falseados para as necessidades da câmera, a movimentação da imagem permanece limitada, assim como a coreografia das lutas. Isso implica em planos mais curtos, fragmentados pela montagem, voltados a instantes específicos: um golpe, corta, a vítima cai no chão, corta, ela se levanta, corta, revanche com algum soco ou pontapé.
O impacto também decorre desta dispersão do olhar: as lutas soam como piscadas do olho, cada segundo equivalendo a novo estímulo de corpos jogados, sangrando, se esforçando. As batalhas se traduzem em espetáculos de resistência, posto que os mesmos inimigos do início estarão presentes até o desfecho. Isso significa que indivíduos baleados, cortados, fraturados e sangrando ainda encontram forças para escalar o topo do trem, entrar pela janela, lutar contra cinco indivíduos de uma vez, e assim por diante. Elogia-se a virilidade enquanto brutalidade. O trem se converte num ringue previsto para intermináveis rounds, até que apenas um dos lados saia vivo.
A necessidade de preservar personagens até a conclusão faz com que Amrit desfira dois socos em algum oponente, levante-se e busque sua amada, ou socorra alguma criança em perigo. Minutos depois, o mesmo sujeito volta para se vingar. Podendo eliminar os desafetos desde o início, tanto o herói quanto os bandidos preferem postergar a concretização de seus objetivos numa manifestação sádica. Caso o militar matasse os demais na primeira oportunidade, o filme se transformaria num curta-metragem. Por isso, ele atinge o corpo alheio, deixa o homem desacordado e move-se ao vagão seguinte, apenas para ser perseguido de novo e de novo. A perversão desta reincidência se estende ao espectador, testemunhando uma vingança voluntária e desnecessariamente alongada para o nosso prazer.
O cineasta se diverte com convenções pouco naturalistas, propensas à lógica do videogame. Amrit enfrenta inimigos cada vez mais poderosos, mais fortes, até o inevitável “chefão” no conflito final. Ele improvisa armas ao longo do caminho: quebra uma janela e utiliza os cacos de vidro para dilacerar pescoços; então abandona o caco para pegar um pedaço de madeira; em seguida, troca a madeira por um lenço capaz de estrangular. Ele poderia manter as armas que lhe servem muito bem, no entanto, para a nossa diversão, diversifica o espetáculo.
A propósito de lutas, o filme remete aos espetáculos de luta livre, claramente encenados, quando dois sujeitos ultrafortes brigam, se jogam pelos ares, caem uns sobre os outros. Então, esperam o adversário se levantar, enquanto convidam a plateia para torcer junto. Este aspecto posado se encontra em Kill: O Massacre no Trem. Amrit atinge um inimigo. Este se levanta, retoma o fôlego, dispara alguma frase de efeito (“Você matou o meu pai!”) e parte para o combate. Caso os 40 homens se lançassem contra Amrit de uma vez só, o sujeito dificilmente resistiria. No entanto, educados, esperam a sua vez. Trata-se de códigos, conveniências do gênero, para que o circo das lutas dure o máximo possível.
O resultado satisfaz bastante no que diz respeito ao estímulo imediato da violência. As coreografias impressionam, e a direção de fotografia explora muito bem os corredores, cabines, banheiros e espaços entre vagões. A transição da luta protocolar à ultraviolência também se destaca pela escolha arriscada (podendo ferir sensibilidades e perder a aderência do público médio), algo que poucas produções ocidentais fariam. A simples existência de um exemplar comercial tão diferente aos nossos padrões, em meio a um mercado saturado de produções semelhantes entre si, constitui motivo de comemoração.
Em contrapartida, por trás das extravagâncias da câmera, resta um discurso retrógrado a respeito do gênero, da moral e da honra. O longa-metragem se presta a um enésimo elogio da masculinidade extrema (compreendida enquanto somatório de força física e sentimento de posse sobre uma mulher), banhado num maniqueísmo simplório (herói gentil contra vilões profundamente maus), recompensando o protagonista pela vingança pessoal, e desacreditando qualquer forma de justiça mediante ferramentas do sistema.
O borrão de maquiagem levemente rosado na têmpora de todo combatente sugere pequenos ferimentos com os quais ele precisa lidar para se provar um homem ainda mais digno de sobrevivência. Kill: O Massacre do Trem abraça a lei da selva, uma animalização das relações sociais, embalada na aparência de amor verdadeiro. Apresenta um balé técnico finamente orquestrado para defender valores antiquados da primazia masculina por motivos meritocráticos. Vangloria a habilidade dos militares, seu senso de responsabilidade e resiliência. Vindo de um país tão desigual e repressivo quanto o Brasil, este retrato merece desconfiança.