O primeiro elemento a destacar a respeito deste documentário diz respeito à pluralidade de recursos utilizados para retratar a vida e obra do muralista Eduardo Kobra. Com certo alívio, o espectador não se depara com um enésimo filme burocrático, do tipo que capta uma centena de horas de entrevistas e depois decide, na montagem, a melhor maneira de colar estas cabeças falantes, em nome de um tema importante que “merece virar filme”. A diretora Lina Chamie possui ambições autorais com o projeto, e nunca se submete servilmente ao tema.
Para quem assistiu a São Silvestre (2013), talvez as figuras de estilo utilizadas em Kobra Auto Retrato (2022) não constituam uma surpresa. A cineasta emprega a montagem ultra fragmentada, com sobreposições, colagens digitais, câmera móvel pelo estúdio do artista, luzes multicoloridas aplicadas ao rosto do protagonista, drones voando para todos os lados, uma câmera colada à bicicleta de Kobra, making of das conversas e assim por diante. Os letreiros gigantescos, as imagens das ruas e as montagens alternadas entre fragmentos curtíssimos remetem à tentativa da criadora em realizar seu próprio Sinfonia da Metrópole ou Um Homem com uma Câmera.
O som acompanha o festival de flashes e estímulos. A trilha sonora de orquestra, a princípio, remete aos sonhos e ao caráter lúdico desta evocação de lembranças pessoais. Depois, entram em cena as falas, os ruídos das cidades e outros barulhos incorporados em pós-produção — às vezes, todos eles reunidos, uns sobre os outros. Algumas batidas crescem em volume até saturarem a banda sonora, e a trilha oscila em tom e importância, chegando a ocultar o som das falas, soterrada pela orquestra. Os sons vêm e vão, se somam e se atropelam, como numa montanha-russa alegremente caótica e satisfeita com sua própria manipulação de sensações.
O documentário não se esforça em compreender, nem contextualizar o homem, apenas evocá-lo em imagens que remetam, por si próprias, ao conteúdo pintado pelo artista.
A escolha se justificaria pelo estilo do muralista. Para um criador conhecido pelas cortes fortes e pelas imagens dinâmicas, nada mais apropriado do que um filme igualmente colorido, entrecortado e jovem, certo? Chamie investe no imperativo do movimento, evitando a todo preço o silêncio, a contemplação, a reflexão. É preciso que as falas se sucedam de maneira ágil, que os murais sejam filmados em drones voadores, e que o processo de pintura e desenho seja entrecortado pelo rosto dos passantes, dos panoramas das cidades, com novas falas em off. Uma estética ultra contemporânea, propícia às redes sociais, se instaura no documentário.
Em certa medida, o estilo funciona na proposta de agitação pop, destinada a tornar a arte da periferia acessível, sedutora, enquanto foge ao didatismo tradicional das reportagens. Evocações da infância são breves, enquanto a citação da companheira de Kobra ganha poucos minutos. Interessa à diretora apenas o trabalhador da arte, suas dificuldades financeiras e o posterior sucesso internacional. Saberemos pouco a respeito da evolução de seu estilo, ou mesmo de seu posicionamento político para além de um pacifismo neutro e consensual.
Logo, o estilo de Kobra se torna retórico. O filme evita enxergá-lo pelo prisma de um pesquisador ou historiador da arte. Não saberemos, ao longo dos enxutos 84 minutos, de que maneira estes murais subverteram a lógica política ou estética vigente, como se relacionaram com a arte de outros muralistas consagrados, como intervieram no espaço urbano. O que havia nestes muros antes? Como são escolhidos os locais, que permissões são exigias, e como se determina a imagem de cada muro pintado? O que houve com muros apagados depois, e por ordem de quais autoridades? Quem é a equipe de Kobra, como se estrutura o esforço conjunto, como evoluiu a remuneração dos trabalhos? A recepção em outros países se equivale àquela no Brasil? Silêncio.
Kobra é oferecido ao espectador enquanto princípio e finalidade do longa-metragem. O filme serve a nos lembrar que ele existe, prosperou, e multiplicou seu estilo geométrico e multicolorido pelo mundo. Ele menciona a depressão, a rejeição dentro do mercado do grafiti e da arte de rua, porém a condição de “autorretrato” do título impede que outras pessoas intervenham para contextualizar estas falas. Mesmo quando o protagonista gagueja e perde o raciocínio, a montagem o acompanha, sem procurar extrair comentários mais valiosos ou precisos. Aqui, a fala do sujeito tímido vale por si mesma, importando pouco o conteúdo em si.
O documentário não se esforça em compreender, nem contextualizar o homem, apenas evocá-lo em imagens que remetam, por si próprias, ao conteúdo pintado pelo artista. Em se tratando de uma arte referenciando outra arte, com o cinema aludindo à pintura, o resultado soa frutífero em sua cacofonia, nas asperezas e excessos abraçados pela diretora. Chamie emprega o máximo de recursos específicos do audiovisual para acrescentar ritmo e tridimensionalidade às imagens fixas sobre as paredes. Em certa medida, procura animá-las para além dos muros.
Talvez algumas destas inserções soem intrusivas, e interessem mais pela curiosidade da iniciativa do que pelo resultado das mesmas. A câmera na bicicleta resulta em imagens pouco expressivas, seja para compreender a cidade, seja para apresentar os deslocamentos do personagem. Alguns movimentos de drones são menos fluidos do que o desejado, “flicando” e chamando atenção excessiva ao próprio dispositivo, o que retira a atenção das pinturas que procurava destacar. As inserções sonoras podem ser óbvias — vide o som da corrida de Aírton Senna diante do painel dedicado ao corredor; e o barulho insistente de revólveres e tiros cada vez que o personagem evoca a violência da periferia. Em algumas sequências, o estilo do documentário briga com seu conteúdo, ao invés de valorizá-lo.
No entanto, o resultado se sobressai pela tentativa importante de romper com o academicismo das formas, oferecendo a um artista subversivo uma forma igualmente subversiva. Chamie compreende que a representação de um pianista clássico ou de um rapaz das periferias, por exemplo, precisaria adotar códigos distintos, adequando sua forma ao conteúdo alheio, apropriando-se de cores e ruídos da cidade. Eduardo Kobra, sua arte e a cidade de São Paulo fundem-se num personagem indissociável, expressivo e histriônico, assim como a diretora gostaria de enxergá-los. O melhor aspecto da conversa entre Kobra e Chamie reside na paixão compartilhada pelo caos poético da capital paulista.