A Portas Fechadas (2023)

A ideologia dos outros

título original (ano)
A Portas Fechadas (2023)
país
Brasil
linguagem
Documentário
duração
63 minutos
direção
João Pedro Bim
visto em
12º Olhar de Cinema (2023)

Este documentário oferece uma experiência perturbadora. Dentro de um festival de claro posicionamento progressista, como o Olhar de Cinema, repleto de filmes que defendem os direitos de povos originários, das minorias, e denunciam repressões, é raro escutar um discurso semelhante àquele apresentado em A Portas Fechadas. Isso porque o diretor João Pedro Bim investiga as imagens produzidas pelo regime militar, desde as vésperas do golpe de 1964 até a promulgação do AI-5, em 1968. Trata-se de peças de propaganda e registros oficiais defendendo os ideais antidemocráticos.

Pode-se falar, portanto, numa proposta de escuta crítica. Os tempos de polarização e ojeriza à reflexão dialética têm transformado a História numa questão de opiniões e interpretações. Para determinadas vozes, os fatos seriam o que eu penso deles, o que prefiro que sejam. Logo, bolhas de esquerda escutam ideias alinhadas com a esquerda, e os círculos de direita mergulham nos discursos conservadores, patriarcais e belicistas que lhes convêm. Substituímos o diálogo pela paranoia, a acusação, a deturpação moldada por notícias falsas.

Conscientemente ou não, A Portas Fechadas participa da chamada “disputa de narrativas” contemporânea. Primeiro, por estimar que documentos e pesquisa devam ser privilegiados em relação a sentimentos pessoais. No lugar das convicções, os fatos. Aqui, nem mesmo os tradicionais especialistas são convidados a discorrer a respeito dos fatos ocorridos em 1968. Bim e a montadora Bruna Carvalho Almeida, tão autora do projeto quanto o cineasta, determinam que as imagens de décadas atrás falem por si próprias. Eles resgatam cinejornais de extrema-direita, palavras de ordem desenvolvimentistas, slogans bombásticos. “Sua paz está em boas mãos”, pregavam os militares. “O Brasil merece o nosso amor”, afirma uma voz autoritária e masculina.

Uma proposta de escuta crítica. A Portas Fechadas estima que documentos e pesquisa devam ser privilegiados em relação a sentimentos pessoais. No lugar das convicções, os fatos.

Percebe-se nestes trechos, através da fala de ministros que determinaram a adoção do AI-5, a naturalização e o embelezamento da ditadura. Estes homens, imortalizados pela voz, porém jamais revelados em imagens (talvez no intuito de não favorecer a identificação, e para debater ideias ao invés de acusar indivíduos isolados), falam abertamente em ditadura, em restringir direitos. “Às favas, presidente”, declara um político ao minimizar os perigos ditatoriais. A este propósito, alguns políticos dos nossos dias, sobretudo os negacionistas da extrema-direita, sustentam que nunca houve golpe, nunca houve repressão. Ora, os próprios utilizavam estes termos com orgulho, por considerá-los necessários para “colocar ordem nas coisas”.

Em segundo lugar, o documentário comprova o potencial de nos confrontar a ideologias diferentes das nossas, sem necessariamente concordar com elas. Acredita-se na reflexão, na discussão, filtradas pelo sento crítico do espectador. No reino do antiintelectualismo do século XXI, estima-se que citar um tema equivale a defendê-lo: inserir um personagem gay num filme seria sinônimo de pregar a homossexualidade; discutir o regime de países comunistas equivaleria a desejar a implementação de tal política no Brasil. Trabalha-se numa ordem prescritiva, contornando o intelecto: imagens equivaleriam a manuais de instruções, ou receitas de bolo.

Ora, a montagem de imagem e som demonstra o potencial do cinema para se distanciar do posicionamento de terceiros, sem ridicularizá-lo nem vilanizá-lo. O filme jamais descaracteriza as falas nem o contexto histórico da década de 1960 para se opor aos militares. Basta aos criadores introduzir ferramentas de linguagem que permitam observar estes fragmentos com estranhamento, distância, dúvida. Almeida opta por congelamentos no vídeo, quando a expressividade de cidadãos, religiosos ou policiais, numa súbita fotografia still, se torna particularmente representativa do caos que estava por vir. Ela desacelera o som, corta abruptamente uma imagem, introduz “falhas”, repetições, ruídos.

Em consequência, contribui a desnaturalizar aquilo que soava, aos olhos reacionários, como um procedimento orgânico à ordem das coisas. As instituições funcionavam normalmente, a julgar pelas propagandas com casais correndo alegremente nos campos e soldados defendendo com vigor a soberania nacional. Julgando pelos registros sonoros, a concretização do golpe em 1964 e de seu endurecimento em 1968 foram aceitos enquanto um pequeno mal necessário, um desvio mínimo da legislação, uma coragem de fugir à ordem que não lhes convinha. Algo semelhante àquilo que viria a acontecer durante a votação que instituiu o golpe de 2016, quando Dilma Rousseff foi retirada do poder, e Jair Bolsonaro homenageou um torturador na Câmara dos Deputados.

Estes paralelos nos levam, inevitavelmente, ao século XXI. A Portas Fechadas incomoda não apenas pelo retrato potente dos anos mais sombrios que o Brasil já viveu, mas também pelas semelhanças os materiais de arquivo guardam com os dias atuais. Adoraríamos dizer que tudo aquilo ficou para trás, relegando o caos ditatorial à condição de pesadelo distante. Ora, os anos de 2019 a 2022, com um presidente e ministros que tramaram para dar um novo golpe e permanecerem no poder, relembram os perigos constantes do autoritarismo. A conquista democrática precisa ser renovada a cada ano, cada eleição. No último governo, havia mais militares na gestão do Estado do que nos tempos da ditadura. A Câmara dos deputados e o Senado nunca foram tão conservadores, graças ao poder das bancadas do Boi, da Bala e da Bíblia.

Mesmo sem ficcionalizar os procedimentos, é curioso e interessante perceber o quanto o projeto se assemelha ao cinema de horror. Os recursos empregados por Bruna Carvalho Almeida são idênticos àqueles dos bons filmes de terror: a paralisação da imagem sobre algo sombrio, a duração excessiva de uma imagem até provocar o estranhamento, o corte ríspido despertando a impressão de que algo grande foi ocultado fora de quadro, ou para além do tempo da cena. Longe do mero exercício de colagem ou de aproximação entre arquivos, os autores oferecem um belo esforço de construção de sentidos. 

Compreendemos, por fim, que a ideologia é uma questão de estética, e todas as imagens que nos soam exageradas, edulcoradas ou ridículas naquelas peças de propagando pertencem à idealização muito séria de nossos opositores. O desenho grandiloquente da pátria, a lógica branca e sanitizada da família tradicional, o imaginário de virtude dos militares se contrastam fortemente com a realidade dos mesmos grupos. É justamente na lacuna imensa entre o real e sua representação, escancarada por Bim e Almeida, que se mapeia a figura de um monstro brasileiro que continua vivendo sob nossas camas.

A Portas Fechadas (2023)
8
Nota 8/10

Zeen is a next generation WordPress theme. It’s powerful, beautifully designed and comes with everything you need to engage your visitors and increase conversions.