Kompromat: O Dossiê Russo (2022)

Liberdade, Igualdade, Fraternidade

título original (ano)
Kompromat (2022)
país
França
gênero
Suspense, Ação
duração
127 minutos
direção
Jérôme Salle
elenco
Gilles Lellouche, Michael Gor, Joanna Kulig, Sasha Piltsin, Mikhail Safronov, Louis-Do de Lencquesaing, Elisa Lasowski, Judith Henry, Daniil Vorobyov
visto em
Cinemas

Este filme pode ser interpretado enquanto peça de propaganda a respeito da pretensa superioridade dos valores franceses em relação àqueles do resto do mundo. Enquanto Hollywood multiplica superproduções onde homens valentes provam seu heroísmo e salvam o mundo de vilões estrangeiros, agora chega um exemplar onde um francês corajoso se descobre um verdadeiro soldado contra forças opressoras internacionais. No caso, os bandidos são os russos, inimigos comuns do imaginário ocidental, e convenientes em tempos de invasão na Ucrânia.

O sujeito comum, neste caso, é Mathieu Roussel (Gilles Lellouch), diretor de uma unidade da Aliança Francesa na Sibéria. Após uma apresentação artística onde dois homens se beijam em cena, ele é sequestrado e jogado na prisão sob o falso pretexto de ser pedófilo e estuprador. O termo “kompromat”, conforme explica a introdução, consiste num dossiê falso concebido para incriminar opositores do governo russo. O francês levanta outros motivos pelos quais teria sido alvo de perseguição: ele se veste de princesa para brincar com a filha pequena, e não gosta de caçar. “A mentalidade russa é diferente da mentalidade francesa”, explicam seus algozes. 

Acostumado ao cinema de ação em moldes norte-americanos, o diretor Jérôme Salle acentua os traços do maniqueísmo: o herói é um sujeito progressista, corajoso, bom pai e marido zeloso (o texto interpreta ciúme e possessão como provas de amor). Enquanto isso, os russos, com raras exceções, são sujeitos violentos, grosseiros, amantes de armas, homofóbicos e mafiosos. Não por acaso, o homem bom recebe como presente do destino o amor de uma bela mulher russa (Joanna Kulig), abusada pelo marido agressivo e perseguida pelo sogro, um dos líderes da KGB.

Gilles Lelouche, um dos atores mais populares da França, se encarrega portanto de encarnar o tipo empoderado pelo perigo. Todos ao redor se espantam com a capacidade do sujeito que, diante das dificuldades, inventa-se um sobrevivente, capaz de enfrentar as regras corruptas dos inimigos. A partir da segunda metade, quando o suspense se converte em filme de ação tradicional, ele será chamado de “soldado”, e agirá de acordo. O intérprete compõe um protagonista de moral inflexível e gritos de raiva diante da injustiça do mundo. Um herói convencional, portanto.

Se Kompromat: O Dossiê Russo decepciona enquanto retrato geopolítico e visão de mundo, ele funciona dentro das regras estritas do suspense de ação comercial.

Se Kompromat: O Dossiê Russo decepciona enquanto retrato geopolítico e visão de mundo, ele funciona dentro das regras estritas do suspense de ação comercial. Salle sabe compor cenas tensas de perseguição na floresta, e fuga da vigilância da KGB. A montagem embaralha a temporalidade, começando com cenas da conclusão para, só então, revelar ao espectador como se chegou a tal momento de fuga e correria. Os flashbacks com a filha pequena traduzem-se em clichês funcionais, para reforçar a motivação da vítima em escapar do seu calvário vivo. 

Ao longo do percurso, alguns elementos soam acessórios, impossíveis, ou convenientes demais para facilitarem o caminho de Mathieu. Um celular esquecido na torradeira, e jamais reivindicado pela dona, vem a calhar na hora de uma comunicação clandestina; e reportagens de televisão informam apenas as notícias que convêm ao protagonista e ao espectador. Golpes de sorte, a exemplo da cena do porta-malas e da disputa no pântano, revelam a mão pesada do cinema-destino fazendo o possível para colocar o sujeito ordinário em enrascadas gigantescas, apenas pelo prazer de tirá-lo com a mesma facilidade. 

O roteiro encontra espaço para criticar a passividade francesa face à opressão russa (através da figura de Louis-Do de Lencquesaing, um embaixador covarde) e elogiar o gesto de coragem de um intelectual russo que compreende a situação de Mathieu e o ajuda durante a fuga. Em outras palavras, demonstra-se total descrença com a política institucional, preferindo gestos pessoais e irrefletidos de sujeitos contrários ao sistema. Trata-se de uma obra niilista em nível global, preferindo os valores do individualismo e do faça-você-mesmo. Sociedades não funcionam, mas sujeitos intempestivos, sim.

Ao final, Kompromat: O Dossiê Russo acredita ser uma versão francesa de O Regresso, com um Lellouch-DiCaprio combatendo a ferocidade da natureza e dos homens para, com as próprias mãos, sobreviver a uma força selvagem e triunfar ao final. É claro que o cineasta jamais demonstra o virtuosismo, nem o controle de mise en scène do histriônico diretor mexicano, preferindo uma abordagem mais impessoal, clássica de enquadramentos e condução das cenas. Em outras palavras, um cinema funcional, porém sem marcas pessoais nem vontades distintivas em relação a obras semelhantes. O projeto prefere se misturar ao vasto imaginário de produções hollywoodianas a reivindicar um espaço para si.

À talentosa Joanna Kulig, cabe o papel de transformar a identidade polonesa em russa, servindo de par romântico para o mocinho — função ingrata em que são colocadas tantas atrizes de potencial. Michael Gor, veterano ator russo, compõe pela enésima vez o russo mafioso e perigoso, reforçando contra a sua vontade este imaginário popular da Rússia como terra de sujeitos selvagens e incivilizados. Neste caso, protesta-se contra a indústria que explora os atores nestes papéis-clichês, ao invés dos próprios intérpretes, que executam os lugares-comuns com a dignidade que lhes cabe. Ambos estão competentes na trama francesa, atribuindo alguma fragilidade aos personagens, quando possível.

Resta uma obra de ambientação competente, ritmo fluido, porém facilmente esquecível. Apesar das dificuldades encontradas pelo caminho, o resultado dos esforços é previsível, em vista do discurso pregado pela obra — alguém acreditaria que Mathieu sucumbiria às provações? Esposas ressentidas perdoarão, namoradas de conveniência ficarão disponíveis ao amor romântico, inimigos sucumbirão. Esta forma de cinema gosta de apresentar um mundo fora do lugar, apenas para, de maneira mágica, recolocá-lo nos eixos através da obstinação de um único homem. Haja potência e virilidade. 

Kompromat: O Dossiê Russo (2022)
5
Nota 5/10

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