La Bachata de Bionico (2024)

O delírio do real

título original (ano)
La Bachata de Bionico (2024)
país
República Dominicana
gênero
Comédia, Fantasia
duração
80 minutos
direção
Yoel Morales
elenco
Manuel Raposo, El Napo, Ana Minier, Yasser Michelén, Bárbara Plaza, Donis Taveras
visto em
77º Festival de Locarno (2024)

Uma imagem estreita, em formato próximo do quadrado. A câmera móvel, chacoalhando por todos os lados. Como protagonista, um sujeito dependente de drogas, vivendo em cortiços sem eletricidade. Ele sonha em comprar um anel precioso para a sua amada, prestes a sair da clínica de reabilitação, embora nem tenha dinheiro para a próxima refeição. La Bachata de Bionico constitui uma comédia escrachada, veloz e desbocada. Seria possível pensar em uma centena de motivos pelos quais produzir humor a partir de pessoas em situação vulnerável não seria uma boa ideia.

No entanto, a proposta corrosiva do diretor Yoel Morales funciona surpreendentemente bem. O autor nunca ridiculariza os personagens, mas a situação em que vivem. Bionico (Manuel Raposo, em estado de graça) não consegue abandonar o crack, e vive de recolher o lixo de um prostíbulo em troca de moedas. Embora obviamente tenha dificuldades, o roteiro dispensa seu possível sofrimento, priorizando os elementos que o tornam um sujeito de fácil identificação: o amor pela mulher distante, a amizade diária com El Napo, a briga com o ex-namorado de sua querida. O grupo de homens desajustados no centro da trama remete a um grupo de amigos quaisquer.

Logo, os autores nem escondem os problemas cotidianos, nem os utilizam para instrumentalizá-los enquanto exemplos de uma causa. A narrativa se concentra em indivíduos que, entre outras características, são miseráveis e dependentes químicos. No entanto, não constitui uma obra sobre miséria, nem sobre dependência química. Existe uma delimitação fundamental, da ordem do discurso, na postura adotada pelos criadores. Consequentemente, o espectador nunca é levado a nutrir piedade ou temer pelo bem-estar de Bionico e seu grupo. Ninguém enfrenta nenhum risco real à saúde, nem à integridade física.

La Bachata de Bionico possui inúmeros horizontes de referência — filmes como Tangerina e as produções dos irmãos Safdie, de acordo com os criadores. Trainspotting e projetos como Jackass e Borat vêm à mente.

As trapalhadas envolvendo o grupo tampouco dizem respeito ao crack. Ri-se daquilo que, normalmente, não é filmado, muito menos exibido numa grande tela para centenas de pessoas. Morales cria uma entrevista fictícia com a mulher apaixonada por Bionico. Ela afirma que nunca fez sexo anal, mas, se ele pedisse, faria. O atual namorado de La Flaca e o anterior detalham, com a tranquilidade de quem pergunta as horas, o prazer do ato sexual com ela. Todos os colegas comentam com naturalidade o ato de usarem cocaína. Enquanto vendem pó a uma grã-fina, discutem com a empregada sobre a receita de chá.

Em consequência, La Bachata de Bionico retira o tabu de temas considerados controversos, difíceis de vender ou abordar. Ao invés de enxergá-los por um prisma moral ou imoral (contrário à moral), prefere a abordagem amoral (isenta de moral). Não existe um caráter positivo nem negativo no estilo de vida destes sujeitos sentimentais e atrapalhados. Apesar dos inúmeros recursos de estilização (letreiros coloridos, trilha sonora constante, cortes abruptos, movimentos de câmera chamativos), o dispositivo se aproxima dos personagens como se efetuasse um documentário de observação — o famoso mockumentary.

Um dos principais elementos de diversão provém justamente da estética de oposições. As mesmas ferramentas utilizadas nos videoclipes de hip hop para mostrar pessoas em suas mansões, com carros de luxo e cordões de ouro, é aplicada ao preparo do arroz de Bionico e à refeição recebida na boca enquanto tem uma crise de abstinência, preso à cama. Os recursos normalmente associados ao vigor, à positividade e à potência se encontram com instantes de crise e dificuldade. O espetacular se infiltra no íntimo; o grandiloquente se aplica a um sujeito insignificante no tecido social do bairro. A pequenez é elevada ao palco de grande atração, ao ponto de a própria escolha se tornar engraçada.

Por exemplo, a câmera filma um reencontro amoroso e dois atos sexuais (cuidadosamente pensados em termos de enquadramento e duração), além de diversas agressões e perseguições pelas ruas. O espaço da cidade, com seus bairros populares, ruas cobertas de lixo e moradias insalubres, se torna um personagem de importância equivalente àquela de seus ocupantes. No Brasil, o funk proibidão, os vídeos caseiros de dentro das favelas, publicados no Kwai, e a autoparódia nas redes sociais tem se prestado a um jogo semelhante: a subversão pela forma, pelo questionamento do que merece ou não virar imagem, do que pode ou não ser apresentado e admirado.

La Bachata de Bionico possui inúmeros horizontes de referência — filmes como Tangerina e as produções dos irmãos Safdie, de acordo com os criadores. Trainspotting e projetos como Jackass e Borat vêm à mente, pela capacidade de confrontarem o real via estética da afronta, exacerbando ferramentas cômicas ao limite impensável da caricatura. A comédia pode, sim, ser muito política em sua capacidade de distorcer o naturalismo e devolvê-lo ao espectador numa liberdade impossível ao drama clássico. É preciso se distanciar do mundo para enxergá-lo melhor — algo que o cinema de gênero também efetua particularmente bem.

Ao final, Morales testa o alcance de sua premissa. Inventa uma morte cruel, além do possível retorno de um super-herói sem rosto. Abre as vias para uma sequência, aludindo à lógica das grandes produções americanas, parodiadas de maneira mais ou menos evidente ao longo de toda a narrativa. Era preciso que a comédia, em seu volume extrapolado, alcançasse mais cedo ou mais tarde a fantasia, o delírio, o impossível — afinal, o protagonista começa caindo do céu, atravessando nuvens multicoloridas. A comédia captura este extraterrestre do espaço e o devolve ao universo dos sonhos. Enxerga no indivíduo pobre uma epopeia que poucos filmes ousariam imaginar.

La Bachata de Bionico (2024)
8
Nota 8/10

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