Em primeiro lugar, é preciso compreender La Parle na perspectiva de um exercício de cinema. O longa-metragem nasce como fruto de um ateliê ministrado por profissionais, no qual quatro alunos se juntaram e decidiram filmar, com seus telefones celulares, a história de quatro colegas em férias. É um luxo e um privilégio raro, ter seu projeto estudantil finalizado e distribuído em pelo menos dois países no circuito comercial. Enquanto experiência de direção, teste de linguagem e prática assumidamente amadora, o resultado se mostra bastante competente, e acima do nível encontrado em propostas universitárias semelhantes.
No entanto, uma vez lançado no circuito comercial junto às produções “profissionais”, merece ser interpretado enquanto tal, sem condescendências nem paternalismo por parte da crítica. A obra soa como um jovem azarão disputando o mesmo torneio dos veteranos, momento em que precisa ser avaliado sob regras equivalentes. Neste sentido, o resultado possui suas forças (sobretudo, espertezas de produção) junto a algumas fragilidades evidentes. De certo modo, a iniciativa modesta possui consciência de suas limitações, algo que joga a seu favor.
Entre as vantagens, vale citar a escolha pelo filme de férias. O subgênero permite construir vivências enquanto um parêntese apartado da vida real. De férias na França, à beira-mar, a jornada de três amigos franceses e uma brasileira não precisa se preocupar tanto com a descrição do passado, nem com as perspectivas para o futuro. Vive-se apenas o tempo presente, o dia a dia de banhos de mar e conversas aleatórias dentro de casa. Tal dispositivo dispensa o peso das interações e também a ambição do discurso decorrente destes quatro.
Os diretores se filmam de modo espontâneo, um tanto improvisado, para depois descobrirem o saldo da brincadeira. Temos a impressão de testemunhar, ao vivo, os testes de câmera do grupo de amigos.
O filme jamais possui uma mensagem específica a transmitir, nem um manifesto determinado em favor de alguma forma de linguagem ou estética. Ele tateia seu terreno a esmo, a exemplo dos protagonistas que atravessam os dias de maneira etérea, inconsequente. Conversam, comem, provocam-se, e só. A decisão de colocar os diretores e roteiristas na função de atores principais também atenua o peso de criar um universo novo, do zero. Eles se filmam de modo espontâneo, um tanto improvisado, para depois descobrirem o saldo de tal brincadeira. Temos a impressão de testemunhar, ao vivo, os testes de câmera do grupo de amigos.
A predisposição à pequenez e ao acaso gera as principais virtudes e também engendra as deficiências do projeto. Por um lado, soa despojado, livre, com sua câmera na mão, alternando o foco quase aleatoriamente entre um rosto e o outro. As vanguardas francesas nas quais o grupo se inspira partiram exatamente do princípio da câmera leve (em película, na época) que permitia filmar na rua, com luz natural, a partir de interações espontâneas. É claro que, em 2023, o ideal da Nouvelle Vague, 60 anos atrás, já foram ressignificados, estudados e desenvolvidos à luz das novas percepções e demandas sociais. Não haveria sentido em reproduzir, tal qual, uma linguagem intimamente presa ao seu tempo.
Este raciocínio leva a algumas fraquezas do resultado. La Parle soa pequeno até demais, ínfimo na construção de personagens, condução narrativa e escolha conceitual dos planos. O preto e branco surge para unir diferentes estéticas, mas também para conferir uma aura de intelectualidade e atemporalidade que não necessariamente beneficia a obra ultracontemporânea, feita com iPhones. Até por isso, quando a cor azul se torna necessária, a montagem rapidamente volta ao colorido. O preto e branco lembra um filtro, uma traquinagem em referência às obras do mentor Claude Lelouch, ao invés de um conceito plenamente desenvolvido.
Já os personagens têm pouco a fazer em cena, devido às construções insuficientes. Fanny carrega um único conflito: o câncer num passado recente, e a ameaça de que um novo cisto na mama represente a volta do tumor. O mesmo vale para Kevin, cujo pai hoje vive “com outro homem”. Gabriela, a anfitriã brasileira, sofre de saudade da avó, que aparentemente está perdendo as capacidades cognitivas. Já Simon não possui função narrativa, o que se traduz na dificuldade da montagem em inseri-lo nas cenas. Este conflito único se alterna com dezenas de imagens do mar, sendo meros stablishing shots contemplativos, ou pontos para passagem do tempo.
A possibilidade de criar conversas banais, encenar um parto de brincadeira e filmar uma demonstração de carros potentes nas redondezas sustenta a impressão do cinema feito com aquilo que se encontrava ao redor, num aproveitamento singelo do real. Constrói-se pouco em termos de significados, de interações ou sentidos. O papo cotidiano dos quatro se converte uma finalidade em si próprio, uma captação para preencher o tempo e rechear a montagem. A feitura de La Parte adquire forte aspecto retórico, como se possuísse valor em sua própria existência, para além do modesto material humano oferecido.
Resta uma obra interessante enquanto contato inicial com o cinema — nenhum dos quatro autores procura realizar a obra-prima de suas vidas aqui. Confrontados a outras necessidades de fotografia, roteiro e montagem, certamente produziriam obras diferentes, para o bem ou para o mal. Espera-se que venham, de fato, a traçar caminhos ambiciosos e autorais. Os prazeres deste filme de partida podem resultar pouco marcantes ou memoráveis, mas como julgar seus criadores? Quem abriria mão da oportunidade de realizar um longa-metragem inicial, por mais caseiro que fosse, dispondo de suporte suficiente para tal? O saldo soa razoável, para investimento igualmente razoável. Uma espécie de teaser para os bons cineastas que podem estar por vir.