Lucette (2022)

A ciranda dos perversos

título original (ano)
Lucette (2022)
país
Paraguai
gênero
Suspense, Policial
duração
85 minutos
direção
Mburucuya Fleitas, Oscar Ayala Paciello
elenco
Martina Núñez, Rodrigo Reichardt, Amambay Narváez, Crhystina Knapp, Ato Gómez, Borja García-Enriquez
visto em
1º Bonito Cine Sur (2023)

Julgando pela premissa, Lucette pareceria um drama familiar tradicional. A esposa tenta fazer sexo com o marido, que a recusa. No quarto, a garota esconde um desenho na caixinha de madeira. No entanto, a estética indica ao espectador, desde o princípio, que existe algo maior ocorrendo por trás destas imagens. O tom grave e a paleta bege criam uma casa pouco amistosa. O suspense se impõe via atmosfera (luz, música, enquadramentos) muito antes de qualquer elemento narrativo apontando nesta direção.

Chega então uma morte violenta capaz de unir os personagens e detonar, de fato, a busca pelo assassino cruel de crianças. Os diretores Mburucuya Fleitas e Oscar Ayla Paciello mergulham a obra no thriller policial, além do whodunnit (ou seja, a dúvida a respeito de quem matou, pois todos os adultos envolvidos podem ser autores do crime) e da fantasia sobrenatural (graças à figura da empregada doméstica afeita às práticas de bruxaria).

Em consequência, o longa-metragem que já se iniciava macabro procura aprofundar sua jornada rumo um clímax cada vez mais tenso, revelando segredos ocultados pelas personalidades burguesas e apáticas de dois casais e do amigo policial destes. Sugere-se que, por trás da família patriarcal, há fissuras de que ninguém suspeitaria. Poucos adultos se mostram exatamente como os imaginávamos — pelo menos, aqueles que sobrevivem, pois há tantas mortes que a história corre o risco de se encerrar por falta de personagens.

A mão pesada da direção não se priva de aprofundar os dilemas com tamanha intensidade que beiram o absurdo e o paródico.

Aí reside o problema mais evidente de Lucette: a mão pesada da direção, que não se priva de aprofundar os dilemas com tamanha intensidade que beiram o absurdo e o paródico. Trata-se de um projeto sobrecarregado na montagem e na pós-produção, a começar pela trilha sonora. A música ocupa as cenas o tempo inteiro, deixando pouco espaço para respiro, indagação ou ambiguidade. É preciso que o espectador seja informado com insistência do tom de cada cena — que será, invariavelmente, sinistro.

A montagem aplica tiques comuns do imaginário do terror, sem que o gênero se instale por completo. No entanto, estão presentes a montagem fragmentada na floresta obscura, incluindo flashes de crianças mortas; jump scares quando o filho surpreende a mãe na cozinha; sequências aceleradas da mulher praticando atos pagãos junto a outras bruxas-feiticeiras. Isso sem falar em lugares-comuns, como o tio da vítima gritando de desespero dentro do carro; e o policial irritado, dando um murro na parede enquanto observa a própria imagem no espelho.

A construção de personagens se mostra bastante enfraquecida. Nenhum destes sujeitos em luto ganha objetivos, motivações, traços marcantes de personalidade para além do único conflito central relacionado à morte da menina Lucette. Apesar da promessa de uma “investigação paralela” à polícia, estes homens embrutecidos nunca descobrem informações por conta própria, contentando-se em reagir aos dados oficiais — o que levará ao desfecho, quando a obra elogia a seriedade e comprometimento da forças de polícia.

As figuras femininas são particularmente maltratadas neste percurso, algo que gera curiosidade em se tratando da obra escrita e dirigida por uma mulher. Elas se limitam à condição de esposa do protagonista, implorando por atenção e afeto, ou então se convertem na figura da mulher-negra-mística de caráter duvidoso, motivando o desejo e o desdém dos patrões brancos. Restará à mulher frustrada sexualmente o pior dos papéis, como se a ausência de atenção matrimonial provocasse distúrbios psíquicos graves. 

Nota-se certo fetiche por uma sexualidade reprimida, deslocada ao limite da monstruosidade. Os personagens se matam ou se detestam porque não fazem sexo, ou porque a pulsão sexual está deslocada para fora dos preceitos tradicionais. Tudo o que desvia da norma se converte em exotismo e ridicularização — vide as práticas de Jussara; o desejo dos patrões pela empregada; a necessidade de as esposas tomarem iniciativa no sexo com os maridos; e sobretudo o segredo final. 

Enquanto suspense, Lucette sustenta esta atmosfera extremamente carregada, até estimar que já guardou suas cartas por tempo excessivo. Então, o responsável pelo crime entra em quadro, anuncia-se como tal e explica didaticamente todas as suas motivações, a exemplo do desfecho das telenovelas. Nenhum personagem conquistou o direito a esta verdade, tampouco teve tempo se sofrer o impacto emocional de meia dúzia de mortes. Aqui, os fatos e descobertas se encadeiam com a rigidez expositiva de um filme de ação.

Os atores fazem o possível a partir de personagens muito simples. Talvez o aspecto mais interessante provenha da mistura orgânica entre o português, o espanhol e o guarani, que se alternam nos diálogos com plena fluência por parte do elenco. Revela-se então uma cultura fronteiriça raramente trabalhada nos longas-metragens que chegam às telas brasileiras. Mesmo assim, as expressões faciais se limitam aos sentimentos imediatos de frustração ou à tristeza, com pouco trabalho interno para além da superfície. Eles se restringem a funções ou “cargos” narrativos (o pai da menina, o tio da menina, o amigo policial) ao invés de subjetividades autônomas.

Ao final, cabe questionar as obras que se levam a sério demais, apaixonando-se tanto por seus recursos de linguagem (trilha em excesso, plano próximo na lágrima escorrendo, descobertas atrás da porta, revelações espetaculares) que se veem incapazes de adotar qualquer distanciamento crítico. A ficção paraguaia gostaria de denunciar uma série de problemas sociais, no entanto, diverte-se demais com o potencial imersivo destas perversões para manifestar qualquer compreensão social das mesmas.

Lucette (2022)
4
Nota 4/10

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