Mais Pesado É o Céu (2023)

A poesia dos brutos

título original (ano)
Mais Pesado É o Céu (2023)
país
Brasil
gênero
Drama, Suspense
duração
98 minutos
direção
Petrus Cariry
elenco
Matheus Nachtergaele, Ana Luiza Rios, Sílvia Buarque, Danny Barbosa, Buda Lira, Marcos Duarte
visto em
1º Bonito Cine Sur (2023)

Teresa (Ana Luiza Rios) e Antonio (Matheus Nachtergaele) se encontram neste filme muito antes do primeiro contato real entre ambos, à beira de um rio na velha Jaguaribara (CE). A montagem revela ao espectador, desde o princípio, que ambos serão os protagonistas desta jornada. Em cenas alternadas, ela e ele são vistos no banco de passageiro de um caminhão, em ângulos semelhantes, pegando carona e conversando com os respectivos motoristas, com o olhar absorto em direção à paisagem. 

Declaram intenções vagas para a viagem, e assim que descem dos veículos, caminham sem rumo. Trata-se de dois personagens-fantasmas, sem família, trabalho, compromissos. Perambulam pelo espaço que já ocuparam na infância, mas caso não encontrem nada relevante, seguirão em frente. Mais Pesado É o Céu resgata um senso de deambulação e errância típico das figuras resistentes do Cinema Novo, que seguiam durante longos quilômetros pelo sertão seco, a perder de vista — às vezes, até literalmente caírem de cansaço, como nos filmes de Glauber Rocha.

O diretor cearense combina o realismo social, na base do projeto, com elementos de realismo fantástico. Em primeiro lugar, insere a aparição providencial de um bebê saudável, deixado num barco, no ponto exato em que Teresa pudesse encontrá-lo. O destino lhe oferece, ou melhor, impõe, obrigações maternas que ela abraça a contragosto. Instantes depois, chega Antonio, no mesmo enquadramento, no pedaço exato de terra por onde não transita mais ninguém. Voluntaria-se ao papel de pai simbólico e companheiro de jornada.

Mais Pesado É o Céu soa menos niilista do que alguns possam sugerir. Ele escancara a brutalidade, apenas para nos lembrar da capacidade dos personagens em ultrapassá-la.

A trilha sonora de João Victor Barroso nos lembra uma ficção científica, ou talvez uma distopia brasileira, explorando um tema musical que será utilizado em outros momentos da trama. Um assassino em série representa perigo desde a cena inicial — ele será, de fato, o primeiro personagem visto nas imagens, com a câmera-cúmplice posicionada no bagageiro de seu carro, tal qual um refém. O homem sonda, se aproxima, fareja a protagonista. Pela insistência da montagem, sabemos que o matador encontrará Teresa mais cedo ou mais tarde.

Por isso, o filme iniciado com o signo da vida (o bebê ofertado) se contamina pela iminência da morte — seja por assassinato, ou pela falta de comida e de oportunidades. “Bebê com fome!”, grita Antonio à beira da estrada, aos veículos que passam a mais de 100 km/h e muito provavelmente nem o percebem no acostamento. A dupla se abriga em casas abandonadas, criando lares impossíveis numa cidade destruída. Combatem, cena após cena, a perseguição da morte.

Os filmes de Petrus Cariry estão repletos de pessoas em deslocamento constante, ainda que raramente cheguem a algum lugar diferente. Saem pela manhã, caminham, pedem carona. Chegada à noite, encontram-se no mesmo casebre improvisado de antes. Menos do que um fatalismo — o roteiro jamais os posiciona enquanto vítimas —, reflete a afinidade com o pesadelo através de um labirinto em espaço aberto, que também aproxima a obra da fantasia. 

A direção de fotografia do próprio cineasta preserva algumas características autorais: a valorização da natureza em planos abertos; a tendência a enquadrar os protagonistas nos cantos da imagem, sugerindo a marginalidade social; a utilização de batentes de portas e janelas para segmentar as locações e criar imagens-dentro-da-imagem. A luz jamais embeleza a miséria, e tampouco se aproxima de rostos de maneira exploradora nas sequências de catarse. Quando Teresa chora e grita, permanecemos à distância, mal enxergando suas expressões faciais. Há notável respeito e pudor em relação à crise pessoal.

Na construção de personagens, é visível a prioridade das figuras femininas em relação às masculinas. Aqui, são elas quem comandam os lares e prestam apoio uma à outra, defendendo-se sozinhas dos perigos (sempre masculinos) que rondam a região. Possuem maior força, complexidade e combatividade, face a estereótipos (a figura do serial killer onipresente, atraído por Teresa tal qual um ímã) e companheiros passivos. 

Matheus Nachtergaele interpreta Antonio com uma desafetação incomum, próxima da opacidade. Nos raros planos próximos (quando observa Teresa com o bebê, através da janela, por exemplo), chega a ser difícil decifrar os sentimentos deste homem, cuja atitude no final surpreende o espectador — então ele era capaz de gestos tão fortes? Quem diria. O ator pode trabalhar na chave da composição extravagante e histriônica, quando solicitado, porém, desta vez, faz prova de um estilo contido até demais.

Essa opção se equilibra com a força visceral de Ana Luiza Rios, com a amizade um tanto manipuladora da colega interpretada por Sílvia Buarque, e o companheirismo desinteressado da excelente Danny Barbosa. Elas representam a tendência a seguir em frente, apesar de abusos trabalhistas e violências de gênero cotidianas. Os percalços encontrados neste filme não terão sido os primeiros, nem os últimos de suas vivências. Por isso, nunca produzem choque ou surpresa.

Em contrapartida, algumas escolhas dos criadores podem incomodar. Os cuidados com o bebê se limitam a encontrar leite esporadicamente, mas a criança — bem comportada, até — não demanda médicos, fraldas ou demais produtos. O rádio se liga justamente na hora de oferecer alguma informação valiosa ao espectador (em som estranhamente abafado, além de locução que não se assemelha a um programa de rádio convencional), soando acessório demais. Em paralelo, estranha-se o encontro com a mulher que surge para oferecer roupas de bebê e mamadeiras aos passantes. O universo lhes entrega um bebê, mas também fornece utensílios para cuidar do pequeno.

Até por isso, Mais Pesado É o Céu soa menos niilista do que alguns possam sugerir. Ele escancara a brutalidade, apenas para nos lembrar da capacidade dos personagens em ultrapassá-la. É certo que, no caminho, esmiúça didaticamente a poesia em diálogos incomuns à troca oral (novo indício de uma ruptura naturalista rumo à fantasia). Antonio verbaliza “essa coisa de querer voltar para onde um dia a gente foi feliz”, Teresa explica que “a gente, sem saber, vai rastejando mesmo em pé”. Fátima (Sílvia Buarque) afirma que “o tempo passou e eu não tive o filho homem com que sempre sonhei”.

Estes diálogos esporádicos se mostram tão delicados quanto explicativos, reforçando significados já percebidos nas imagens e na construção dos personagens. O diretor representa muito bem o lirismo destas pessoas quando tomam o leite do bebê em segredo; quando escondem um maço de cigarro na bolsa, para não dividir com o colega; quando arrumam os panos numa gaveta que servirá de berço. As palavras, nestes instantes, enfraquecem mais do que reforçam as simbologias. 

Mesmo assim, estas ressalvas não retiram o valor de uma obra capaz de cruzar deslocamentos geográficos e de gênero, voltando-se à resistência de cidades e de mulheres. Danny Barbosa me lembra, em entrevista, que “cidade” é substantivo feminino e, portanto, recebe as mesmas formas de opressão de suas ocupantes. Faz sentido. Ao fim, o filme terá apresentado um casal que não é casal, uma mãe que não é mãe, um pai que não é pai, dentro de uma casa que dificilmente poderia ser considerada como tal. No entanto, eles dão o seu melhor; fazem o possível naquela situação. E seguem em frente.

Mais Pesado É o Céu (2023)
7
Nota 7/10

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