Rosa, Rosa,
Quando a gente bagunça, você limpa
E você, Albert,
Quando a gente brinda, você recolhe os copos
Céline, solteira,
Você guarda os casacos nos vestiários
Arlette, olha só
Você passa a festa nos banheiros
E se a gente celebrasse aqueles que não celebram?
(Stromae, Santé)
Mais um Dia, Zona Norte é um filme composto por anônimos. Isso significa que poucos deles serão de fato nomeados ao longo da narrativa, mas também correspondem ao anonimato no sentido de invisibilidade social. O diretor Allan Ribeiro volta seu olhar à profissional da limpeza pública, ao locutor vestido de super-herói, encarregado de atrair clientes para uma galeria comercial, ao vendedor de objetos numa feira, que também se apresenta nas noites como drag queen. Vivem na zona norte do Rio de Janeiro, como sugere o título, e possuem rotinas tão estáveis quanto repetitivas, no sentido de terem poucas perspectivas de mudança.
Ao invés de se concentrar num momento de transformação em suas trajetórias, o cineasta prefere a crônica dos dias ordinários. Acompanha diversas idas e vindas ao trabalho, os programas de TV vistos com familiares, o ato de passar manteiga no pão. A câmera valoriza o cotidiano sem acreditar na necessidade de embelezá-lo, nem de incorporar conflitos externos para lhe atribuir interesse dramático. O humanismo da proposta nasce da premissa que estas pessoas, em sua existência comum, possam sustentar a narrativa de um longa-metragem.
O longa-metragem interessa pela possibilidade de pensar a geografia social enquanto linguagem.
O cineasta observa o quarteto com rara cumplicidade. Valéria Silva, Victor Veiga, Sílvio Fernandes e Lara Rodrigues nunca se tornam o veículo para alguma mensagem ou discurso específico a respeito das classes populares. O projeto não se move pela nobreza ou importância de seu tema. Isso representa certo respiro em relação a tantas obras tradicionais que buscam se legitimar devido ao fato que “as pessoas precisam saber”, “essa história merece um filme” e outras retóricas derivadas do jornalismo ou de uma meritocracia falaciosa. Neste caso, a banalidade do real constitui meio e finalidade.
Em diversos festivais de cinema, a obra tem sido apresentada enquanto documentário, algo muito distante da linguagem adotada. Não basta ter “pessoas reais” em frente às câmeras, exibindo uma versão de suas vidas, para se atingir uma estética documental. O grau de intervenção e controle no meio, o cuidado de composição e a articulação entre personagens se traduzem numa ficção dramática — talvez um híbrido, se preferirem —, tão apaixonada pelas possibilidades de construção narrativa que inclusive oferece cenas musicais, devidamente coreografadas e ensaiadas.
Mesmo assim, é evidente que Ribeiro aproveita a aparência naturalista a seu favor. A direção de fotografia trabalha com luzes naturais e cores dessaturadas, enquanto o trabalho de som incorpora generosamente os ruídos e demais contribuições fortuitas da cidade. Às vezes, a câmera é posicionada a uma distância segura, pouco perceptível pelos personagens. No entanto, na cena seguinte, a imagem se encontra muito perto do casal deitado na cama, antes de seguir, passo a passo, o trajeto do homem que se levanta e busca uma peruca no cômodo ao lado. O autor brinca em nos dizer, cena após cena: “Estas pessoas são reais, as casas, roupas e circunstâncias são reais, mas a representação das mesmas não é”. Compreende-se a fascinação do criador por Eduardo Coutinho.
As qualidades de Mais um Dia, Zona Norte ultrapassam a exploração conceitual. A montagem excelente do próprio cineasta propõe rimas narrativas, transições fluidas e acenos poéticos de um episódio ao seguinte. Faz com que a gari encontre o super-herói no metrô; converte a fala espontânea em cena musical pelas ruas da Zona Sul; oferece um espetáculo de stand-up exclusivamente ao espectador. Oferece uma forma de respiro, quando o estrondo das ruas se acalma, a voz adquire tom confessional e, em janela vertical, os personagens dialogam com o público. Quantos filmes contemporâneos exploram o formato de tela vertical para além de mera reprodução da estética dos smartphones?
O farto humor nasce do deslocamento (o termo é importante, em se tratando de indivíduos periféricos que ganham a vida nos centros endinheirados) de propósitos e funções. O espetáculo sem plateia, o stand-up para o interlocutor invisível, a dança coreografada no bar, por pessoas que julgávamos não se conhecerem até então. Somos convidados a assistir a uma cena sem saber para onde ela nos leva, de que maneira se conectará com a seguinte, e se terminará com a volta para casa ou com o lip sync no palco de uma balada gay. O acaso está repleto de pequenas surpresas.
Além disso, os personagens possuem tamanha inteligência e consciência de classe que constituem excelentes comentaristas da dinâmica suburbana, sem converter a obra num panfleto explicativo. Basta presenciar a ironia com que Victor menciona a “proximidade” do Cristo Redentor (na verdade, um pontinho bem distante no horizonte), ou quando Valéria Silva se lembra, abruptamente, que não mora na Urca e precisa fazer um longo trajeto de volta. O abismo separando centro e periferia se faz agridoce.
Por fim, o longa-metragem interessa pela possibilidade de pensar a geografia social enquanto linguagem. Elabora uma política do despojamento, onde até as brincadeiras e músicas são tingidas por certo tom de desilusão, de fim de festa, em cores cinzentas e meios-sorrisos. Os personagens terminam a narrativa exatamente onde começaram, com os mesmos trabalhos, funções e obrigações. O título “mais um dia” pode indicar uma interpretação profundamente otimista, ou então desesperançosa, dependendo do ponto de vista.
Afinal, Victor se apresenta nos palcos, porém ignoramos o sucesso ou fracasso da empreitada. Lara Rodrigues investe no samba, mas desconhecemos qualquer forma de ascensão neste meio. Neste sentido, Mais um Dia, Zona Norte guarda mais semelhanças com o road movie, no sentido de privilegiar o percurso, importando pouco onde os personagens chegarão ao final. Contenta-se com o prazer tão singelo quanto precioso de viajar junto, acompanhá-los para onde forem. O posicionamento solidário reside nesta conduta avessa a hierarquias, no olhar de igual para igual.