O espectador pode levar algum tempo até perceber que a trama se passa inteiramente num hotel. A câmera filma uma piscina gigantesca, um salão de jantar e uma sala de estar onde existem apenas a mãe Piedade (Anabela Moreira), a avó Sara (Rita Blanco), a filha Salomé (Madalena Almeida) e duas acompanhantes. O núcleo se assemelha a uma família burguesa decadente, transitando pelos cômodos que um dia já teriam conhecido certa ostentação. As demandas de pratos a uma cozinheira lembram o funcionamento de uma mansão privada, até uma mulher interditar o acesso à piscina: “Há horário para isso, você não pode entrar. Senão, paga multa de três euros. Temos clientes”.
Mal Viver nunca separa o profissional do pessoal, ou ainda o íntimo do coletivo. Conforme enxergamos um ou outro hóspede esparso, e a geografia do hotel se estabelece, o quinteto de mulheres se ataca no saguão, na recepção, na cozinha, em frente de todos. Briga-se em alto e bom som, com o acréscimo de testemunhas ouvindo à porta. Na saída, as pessoas implicadas na discussão descobrem a presença das espectadoras de suas confissões, mas não se importam. Neste espaço, as coisas parecem sempre ter funcionado assim.
Não tarda a se confirmar a hipótese do hotel como personagem principal, e metáfora do estado de espírito de suas ocupantes. O lugar está vazio, cheira mal, tem dificuldade frequente de fechar as contas. Não existem funcionárias de limpeza, nem de manutenção ou segurança: as cinco mulheres comandam o local sozinhas, tais quais as guardiãs do seu próprio Overlook Hotel. Há quartos fechados com sapatos empilhados; e uma sauna utilizada apenas pela gerente. Ao sabermos do longo histórico deste empreendimento nas mãos desta família, compreendemos a mistura entre lar e negócios.
Presenciar um insulto desperta um efeito específico, mas presenciar o terceiro, quinto, décimo insulto gera uma relação diferente: ficamos irritados? Cansados? Anestesiados?
O diretor João Canijo permite que os relacionamentos se desenhem aos poucos, até se reforçarem em caráter cíclico, rumo a uma inevitável explosão. A trama se inicia com a chegada da neta, após a morte do pai. Ela é informada, ao ocupar um dos quartos, que a mãe tentou suicídio recentemente. A morte acena no horizonte desta trama, em paralelo à evidente morte do hotel-protagonista (os negócios vão mal, e as portas serão fechadas em breve). Pelo teor de provocações e desafetos, compreende-se que alguém precisará morrer para que as demais saiam da situação cronicamente desfavorável a todas.
Por isso, o texto investe numa sequência perversa de agressões, humilhações, intimidações e afins. “Você é egoísta, só pensa em ti. Tudo o que toca, mata”, dispara a avó à filha. “Não posso ficar com a miúda. Eu nunca soube amá-la”, confessa a mãe. “Então por que não me abortou?”, questiona friamente a garota. Estes instantes ocorrem sem qualquer explosão sentimental, apenas um ressentimento profundo, fazendo com que as personagens fiquem escutando, em silêncio, o ataque contra si, até dormirem chorando, e se encontrarem para o trabalho novamente no dia seguinte.
Enquanto isso, perambulam pelos corredores na condição de fantasmas, admirando as sombras alheias em portas de vidro e reflexos no espelho. Canijo se mostra um diretor estetizante pela maneira como explora as paredes e batentes de portas para separar as personagens dentro de um único enquadramento, de modo a reforçar sua oposição. Posto que este mundo feminino e predatório se atém ao hotel (a câmera não deixa o local por um plano sequer), cabe ao som representar o mundo lá fora: as discussões são acompanhadas da televisão ligada em algum cômodo, o telefonema de um hóspede invadindo a cena principal, o programa de televisão ao fundo.
Ironicamente, tantos estímulos reforçam a solidão destas figuras, que nunca interagem com outras pessoas além daquelas que amam e odeiam profundamente. Elas se consomem e se devoram, dia após dia, sem que a situação melhore ou retroceda. O aspecto voluntariamente repetitivo resultou na indignação de tantos críticos no Festival de Berlim, que se levantaram e abandonaram a sessão de 127 minutos. De fato, a dinâmica não se transforma a seguir: uma vez compreendida a abordagem do cineasta, ela se sustenta, de maneira linear, até a conclusão.
No entanto, é precisamente a experiência do cansaço, do expurgo emocional, que procura se comunicar com o espectador. Presenciar um insulto desperta um efeito específico, mas presenciar o terceiro, quinto, décimo insulto gera uma relação diferente: ficamos irritados? Cansados? Anestesiados? Canijo busca a crônica de uma situação crônica, no interior de um espaço que combinas as funções de palacete, esconderijo e casa mal-assombrada.
Às vezes, a câmera admira os quartos de um ponto de vista externo, espiando os hóspedes de diversos quartos em simultâneo. Em geral, as pessoas brigam ou se entediam, como o quinteto central. Logo, sugere-se que a situação destas mulheres não seria especial, mas representativa de um desfalecimento social, uma sensação de vazio geracional que ultrapassa a direção do hotel. Na parte interna dos quartos, onde as vozes gritam ao telefone: haveria outras Salomé, Piedade e Sara. Paira um teor desencantado, nada otimista, nesta concepção de uma classe média-alta falida, tentando manter as boas aparências.
O elenco se presta ao jogo naturalista em partes, porém teatral em outras cenas. Rita Blanco e Anabela Moreira se completam de maneira exemplar — a primeira, na força e atividade, a segunda, na instabilidade emocional e passividade-agressividade. “Minha pobre filha”, lamenta a avó de maneira condescendente, antes de insultá-la cruelmente. Apenas Madalena Almeida fica abaixo das duas, num registro menos expressivo, de pouca variação em tons e intenções. No entanto, ela não prejudica a construção imagética e cênica bastante coesa.
O final será triste e não será, visto que os graves acontecimentos eram antevistos, e necessários para que o ambiente tóxico sofresse alguma transformação. Nem mesmo a catarse consegue ser filmada de maneira a extravasar e romper com códigos: o grito de uma mulher é registrado da parte de fora do cômodo, através do vidro, e coberto por sombras. Resta a distância e o distanciamento, no avesso da piedade ou identificação com as heroínas. Até a cena final, Mal Viver observa estas mulheres com um misto de compaixão e interesse puramente científico, sociológico, para compreender como brigam e se amam estas criaturas autoisoladas num cativeiro de luxo.