Mal Viver (2023)

Mulheres em ruínas

título original (ano)
Mal Viver (2023)
país
Portugal, França
gênero
Drama
duração
127 minutos
direção
João Canijo
elenco
Anabela Moreira, Rita Blanco, Madalena Almeida, Cleia Almeida, Vera Barreto
visto em
73º Festival de Cinema de Berlim

O espectador pode levar algum tempo até perceber que a trama se passa inteiramente num hotel. A câmera filma uma piscina gigantesca, um salão de jantar e uma sala de estar onde existem apenas a mãe Piedade (Anabela Moreira), a avó Sara (Rita Blanco), a filha Salomé (Madalena Almeida) e duas acompanhantes. O núcleo se assemelha a uma família burguesa decadente, transitando pelos cômodos que um dia já teriam conhecido certa ostentação. As demandas de pratos a uma cozinheira lembram o funcionamento de uma mansão privada, até uma mulher interditar o acesso à piscina: “Há horário para isso, você não pode entrar. Senão, paga multa de três euros. Temos clientes”.

Mal Viver nunca separa o profissional do pessoal, ou ainda o íntimo do coletivo. Conforme enxergamos um ou outro hóspede esparso, e a geografia do hotel se estabelece, o quinteto de mulheres se ataca no saguão, na recepção, na cozinha, em frente de todos. Briga-se em alto e bom som, com o acréscimo de testemunhas ouvindo à porta. Na saída, as pessoas implicadas na discussão descobrem a presença das espectadoras de suas confissões, mas não se importam. Neste espaço, as coisas parecem sempre ter funcionado assim.

Não tarda a se confirmar a hipótese do hotel como personagem principal, e metáfora do estado de espírito de suas ocupantes. O lugar está vazio, cheira mal, tem dificuldade frequente de fechar as contas. Não existem funcionárias de limpeza, nem de manutenção ou segurança: as cinco mulheres comandam o local sozinhas, tais quais as guardiãs do seu próprio Overlook Hotel. Há quartos fechados com sapatos empilhados; e uma sauna utilizada apenas pela gerente. Ao sabermos do longo histórico deste empreendimento nas mãos desta família, compreendemos a mistura entre lar e negócios. 

Presenciar um insulto desperta um efeito específico, mas presenciar o terceiro, quinto, décimo insulto gera uma relação diferente: ficamos irritados? Cansados? Anestesiados?

O diretor João Canijo permite que os relacionamentos se desenhem aos poucos, até se reforçarem em caráter cíclico, rumo a uma inevitável explosão. A trama se inicia com a chegada da neta, após a morte do pai. Ela é informada, ao ocupar um dos quartos, que a mãe tentou suicídio recentemente. A morte acena no horizonte desta trama, em paralelo à evidente morte do hotel-protagonista (os negócios vão mal, e as portas serão fechadas em breve). Pelo teor de provocações e desafetos, compreende-se que alguém precisará morrer para que as demais saiam da situação cronicamente desfavorável a todas.

Por isso, o texto investe numa sequência perversa de agressões, humilhações, intimidações e afins. “Você é egoísta, só pensa em ti. Tudo o que toca, mata”, dispara a avó à filha. “Não posso ficar com a miúda. Eu nunca soube amá-la”, confessa a mãe. “Então por que não me abortou?”, questiona friamente a garota. Estes instantes ocorrem sem qualquer explosão sentimental, apenas um ressentimento profundo, fazendo com que as personagens fiquem escutando, em silêncio, o ataque contra si, até dormirem chorando, e se encontrarem para o trabalho novamente no dia seguinte.

Enquanto isso, perambulam pelos corredores na condição de fantasmas, admirando as sombras alheias em portas de vidro e reflexos no espelho. Canijo se mostra um diretor estetizante pela maneira como explora as paredes e batentes de portas para separar as personagens dentro de um único enquadramento, de modo a reforçar sua oposição. Posto que este mundo feminino e predatório se atém ao hotel (a câmera não deixa o local por um plano sequer), cabe ao som representar o mundo lá fora: as discussões são acompanhadas da televisão ligada em algum cômodo, o telefonema de um hóspede invadindo a cena principal, o programa de televisão ao fundo. 

Ironicamente, tantos estímulos reforçam a solidão destas figuras, que nunca interagem com outras pessoas além daquelas que amam e odeiam profundamente. Elas se consomem e se devoram, dia após dia, sem que a situação melhore ou retroceda. O aspecto voluntariamente repetitivo resultou na indignação de tantos críticos no Festival de Berlim, que se levantaram e abandonaram a sessão de 127 minutos. De fato, a dinâmica não se transforma a seguir: uma vez compreendida a abordagem do cineasta, ela se sustenta, de maneira linear, até a conclusão.

No entanto, é precisamente a experiência do cansaço, do expurgo emocional, que procura se comunicar com o espectador. Presenciar um insulto desperta um efeito específico, mas presenciar o terceiro, quinto, décimo insulto gera uma relação diferente: ficamos irritados? Cansados? Anestesiados? Canijo busca a crônica de uma situação crônica, no interior de um espaço que combinas as funções de palacete, esconderijo e casa mal-assombrada. 

Às vezes, a câmera admira os quartos de um ponto de vista externo, espiando os hóspedes de diversos quartos em simultâneo. Em geral, as pessoas brigam ou se entediam, como o quinteto central. Logo, sugere-se que a situação destas mulheres não seria especial, mas representativa de um desfalecimento social, uma sensação de vazio geracional que ultrapassa a direção do hotel. Na parte interna dos quartos, onde as vozes gritam ao telefone: haveria outras Salomé, Piedade e Sara. Paira um teor desencantado, nada otimista, nesta concepção de uma classe média-alta falida, tentando manter as boas aparências.

O elenco se presta ao jogo naturalista em partes, porém teatral em outras cenas. Rita Blanco e Anabela Moreira se completam de maneira exemplar — a primeira, na força e atividade, a segunda, na instabilidade emocional e passividade-agressividade. “Minha pobre filha”, lamenta a avó de maneira condescendente, antes de insultá-la cruelmente. Apenas Madalena Almeida fica abaixo das duas, num registro menos expressivo, de pouca variação em tons e intenções. No entanto, ela não prejudica a construção imagética e cênica bastante coesa.

O final será triste e não será, visto que os graves acontecimentos eram antevistos, e necessários para que o ambiente tóxico sofresse alguma transformação. Nem mesmo a catarse consegue ser filmada de maneira a extravasar e romper com códigos: o grito de uma mulher é registrado da parte de fora do cômodo, através do vidro, e coberto por sombras. Resta a distância e o distanciamento, no avesso da piedade ou identificação com as heroínas. Até a cena final, Mal Viver observa estas mulheres com um misto de compaixão e interesse puramente científico, sociológico, para compreender como brigam e se amam estas criaturas autoisoladas num cativeiro de luxo.

Mal Viver (2023)
7
Nota 7/10

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