Jérémie (Félix Kysyl) efetua um longo trajeto de carro, de volta à cidade de sua juventude. Chegando lá, na ocasião de um funeral, as pessoas estranham a sua presença. Ele é claramente malquisto pelos vizinhos, que preferem evitá-lo. Aqui e acolá, as pessoas se perguntam quando ele vai embora. Mas por que o jovem padeiro incomoda tanto? Qual a relação dele com o falecido? Que tipo de intimidade possuía com a viúva Martine (Catherine Frot), a quem sugere permanecer indefinidamente em sua casa, e qual seria a motivação da raiva do filho dela, Vincent (Jean-Baptiste Durand)?
Misericórdia não pretende responder a estas perguntas tão cedo. Muitas delas nem mesmo serão completamente elucidadas. O principal elemento de tensão neste suspense decorre da distribuição desigual de informações: Jérémie sabe muito a respeito dos habitantes do pequeno vilarejo; os habitantes conhecem bastante de seu passado; mas o espectador não possui dados sobre nenhum dos dois. Diante das intrigas de bastidores, olhares desconfiados e irritados, cabe lançar nossas hipóteses. O recém-chegado seria um aluno do falecido? Amante dele? Ou, então, amante do filho? Ou, ainda, amante do homem solitário na casa ao lado?
Estas dúvidas se legitimam posto que, na ausência de dados oferecidos didaticamente ao espectador, o diretor e roteirista Alain Guiraudie nos fornece inúmeras pistas (algumas reais, outras falsas) a respeito das intenções destas pessoas. O francês promove uma espécie de jogo entre o realismo social e a fantasia, com espaço generoso para o humor absurdo. Trata-se de uma dinâmica espectatorial participativa, por assim dizer. Ao invés de nos deslumbrar ou divertir, o cineasta prefere nos ver intrigados, tais quais detetives amadores numa trama envolvendo mortes naturais, assassinatos e uma ciranda vertiginosa de paixões.
O aspecto sinistro do homicídio se atenua, enquanto a paixão gay deixa de ser tabu. A normalização de temas naturalmente vistos como extraordinários constitui um motor de fascinação central nesta obra.
O longa-metragem se dedica, em particular, aos desejos dos homens. A partir de Jérémie, este conhecido-misterioso, este homem que todos detestam e cobiçam ao mesmo tempo, instaura-se uma faísca de libido no vilarejo conservador e católico. Sugere-se que Jérémie tenha se envolvido, de fato, com o falecido. Mas também com o filho dele, na juventude. Mas também com a viúva (e todos se inquietam que ele tente fazer sexo com ela). Mas também com o vizinho. E, possivelmente, com o abade Griseul. De madrugada, um policial entra no quarto do visitante, e escuta sua respiração enquanto dorme.
Estas ações são progressivamente incongruentes, ainda que conduzidas com a serenidade de um belo drama ou de um suspense policial estritamente ligado aos fatos. Parte do humor inesperado se origina desta disparidade voluntária de tons: o roteiro seria propenso a uma comédia de costumes (os irmãos Coen fariam a festa com esta premissa), já a direção insiste em nos dizer que as atividades são sérias, verossímeis, possíveis. Ora, em que momento o espectador deixa de acreditar no que está vendo? Quando o improvável se torna improvável demais? O roteiro opera neste tensionamento constante — o desafio também parte da linha tênue entre crença e descrença.
Outro mistério, responsável por aproximar o naturalismo da fantasia, reside na incapacidade de Jérémie em partir. Ele é provocado, intimidado, ameaçado com uma arma, emboscado numa tentativa de assassinato. É perseguido pela polícia, que reúne provas suficientes para implicá-lo num crime pela região. Mesmo assim, o jovem não foge. Ele pega o carro, mas é interrompido na estrada. Sai caminhando à noite, mas é reencontrado. Vaga durante o dia, mas volta para o jantar. Algo o impede de partir. Ele não desejaria, de fato, escapar? Gostaria de ser pego, capturado? Estaria se entregando ao perigo, testando também os limites da sobrevivência, numa espécie de jogo erótico?
Neste aspecto, Misericórdia se conecta muito bem com outra obra-prima de Guiraudie. Em Um Estranho no Lago (2013), um jovem gay, numa zona de pegação entre homens, testemunha um possível assassinato. Mesmo assim, não consegue conter a vontade de se aproximar do pretenso assassino — um sujeito atraente, musculoso, alvo de cobiça de todos os rapazes locais. O protagonista deseja investigar, mas também fazer sexo. Aquele que poderia matá-lo também poderia lhe proporcionar um prazer sexual imenso. Algo muito semelhante ocorre no entrelaçamento de morte e sexo em Misericórdia.
O acréscimo, neste caso, provém do humor. Este é um filme inesperadamente divertido, próximo do burlesco, num entrelaçamento raro de estilos. A cena do confessionário, quando o religioso declara seu amor pelo assassino, constitui uma pérola em termos de texto, estilo e atuações. A metáfora dos cogumelos, presentes em todos os lugares, embora procurados como uma relíquia rara, aproxima a narrativa do teatro do absurdo. A imagem de um sujeito idoso carregando com facilidade um cadáver pesado, e de uma mulher de meia-idade seduzindo o suspeito pela morte de seu filho (“Volta pra cama”) também desperta sorrisos de desconforto.
Às vezes, rimos porque não sabemos exatamente como reagir diante de personagens cujas ações destoam muito do esperado. Rimos porque suas atitudes, posturas e entonações nos desafiam. Sorrimos devido a cenas inesperadas de nudez (aqui, mais engraçadas do que sensuais), a um flerte envolvendo cuecas imensas, aos encontros circulares e ininterruptos pelo povoado — todos se cruzam, o tempo inteiro, o que impede qualquer forma de intimidade e privacidade. Policiais invadem quartos, visitantes invadem abadias. O público se funde com o privado; os desejos homossexual e heterossexual se misturam; o crime e a legalidade se borram.
“Precisamos de mais mortes inesperadas, de assassinatos”, defende o abade (magnificamente interpretado por Jacques Develay). O homem idoso apresenta belos argumentos, parcialmente cristãos, parcialmente niilistas, para valorizar a morte — algo fundamental em uma religião dependente do pressuposto da ressurreição. “A morte não é uma coisa ruim. A vida precisa chegar ao fim”, ele sustenta. Assim, o aspecto sinistro do homicídio se atenua, enquanto a paixão gay deixa de ser tabu. A normalização de temas naturalmente vistos como extraordinários constitui um motor de fascinação central nesta obra.
“É a força do desejo, suponho”. Esta simples frase visa justificar tantos acontecimentos circulares, rumo a um irônico final feliz, repleto de ternura e certa pitada de horror. Misericórdia se encerra como um filme bizarro, no melhor dos sentidos. Este é o tipo de experiência que permanece na cabeça do espectador, devido a tantas questões nunca respondidas — e outras respondidas com teses ainda mais estapafúrdias que seus pontos de partida. Diversas pessoas saíram da sala de cinema sem saber se tinham gostado ou não da proposta. O consenso apontava para um filme estranho.
Ora, esta capacidade de provocar o espectador sem recorrer ao choque, nem o espetáculo em modo clickbait — apenas num nível intelectual, conceitual, no storytelling propriamente dito — faz de Misericórdia uma obra muito especial, provocadora, embora permaneça simples, linear, acessível em sua compreensão de ações e atividades. Dispensando estripulias de direção e recursos vaidosos de roteiro, Guiraudie propõe um filme discretamente genial.