Mudos Testemunhos parte de uma dupla recuperação de imagens de arquivo. Tempos atrás, o grande diretor colombiano Luis Ospina decidiu criar um novo longa-metragem utilizando trechos resgatados do cinema mudo nacional. No entanto, faleceu antes de completar o projeto, o que deixou a finalização da obra em suspenso. Entra em cena o jovem diretor Jerónimo Atehortúa, que aceita concluir o filme num regime de coautoria com o cineasta falecido. Resgata-se a obra de resgate, ou ainda, oferece-se uma segunda vida a materiais dos primórdios do cinema, que pareciam esquecidos na contemporaneidade.
O resultado se assume enquanto colcha de retalhos. Ospina já pretendia unir inúmeros fragmentos de clássicos colombianos numa narrativa vanguardista. O fato de esta colcha ser costurada à colcha de outro artesão torna a fragmentação ainda mais evidente, jogando tanta luz às costuras quanto ao resultado final da manufatura. Esta é uma obra a respeito das imagens, ou ainda, o cinema refletindo o próprio cinema.
Trata-se de uma iniciativa de memória e preservação, sem dúvida, porém distante de uma submissão servil às películas de origem. Ou seja, nota-se a pesquisa, a recuperação das imagens e então a construção autônoma de um novo e fascinante monstro de Frankenstein cinematográfico. O resultado vale tanto pelo que redescobre, em seu sentido de partida, do que pelo pode recriar, ressignificar, ao unir trechos, personagens e captações díspares. A dupla combinou história de amor, reportagens documentais, filmagens de vanguarda e documentos etnográficos numa aventura vertiginosa.
Trata-se de uma iniciativa de memória e preservação, sem dúvida, porém distante de uma submissão servil às películas de origem.
Em apresentação ao público, Atehortúa explicou com surpreendente lucidez os valores e os desafios desta iniciativa. Elogiou a “qualidade fantasmagórica” da obra e felicitou os raros espectadores dispostos a assistir a pedaços do cinema mudo colombiano. Declarou que sua tarefa seria de “restituir o poder catártico dessas imagens”, e que, ao finalizar a obra inacabada de Ospina, contribuiria a “usar o cinema enquanto luta contra a morte”. Em outras palavras, para além de constituir o documento de uma época, o projeto oferece a possibilidade de driblar simbolicamente a nossa efemeridade, posto que estes personagens e filmes mudos passam a existir (a princípio) para sempre, no novo filme e na memória daqueles que o veem.
No entanto, a experiência de Mudos Testemunhos pode soar muito simples inicialmente. Parte considerável do roteiro se encontra num quiproquó amoroso clássico — um melodrama em três atos. Efraín se apaixona pela bela Alicia, que encontra por acaso na rua. No entanto, a moça está comprometida com o poderoso empresário Uribe. As dinâmicas tradicionais do triângulo amoroso, do rico contra o pobre, do amor impossível e das dores da paixão (os dois literalmente adoecem pela distância) estão presentes de maneira exagerada. O teor do jogo cênico deve despertar risos pelo abismo existente entre esta visão de mundo e a maneira como se filma, ama e conta histórias atualmente.
Logo, o romance adquire contornos sombrios, inesperados. Há tiros, perseguições, uma casa em chamas, e um incêndio que atinge a cidade inteira, deixando centenas mortos, e tantos outros, famintos. A leveza caricatural do início cede espaço a algo grave, consequente e iminentemente político. É claro que tais fragmentos nunca conviveram em seu tempo: a preciosidade da obra se encontra na aproximação entre concepções opostas de cinema. Para quem acredita que o cinema mudo seria uma massa homogênea de produções, esta releitura demonstra sua incrível diversidade. Utilizando-se de alguns artifícios cômicos (embora queimado, o amante está vivo, e decide partir em busca de Alicia), os autores permitem continuar uma jornada improvável, misturando romance, drama, comédia, ação e manifesto político.
Subitamente, o pobre Efraín empreende um périplo pela América Latina, onde sobe e desce rios, encontra pessoas indígenas, descobre imagens coloridas. Ele conhece a pobreza em outras regiões, e entrega-se à morte, contrariando as expectativas de recompensa emocional ao espectador. No avesso da tradição romântica, o rapaz (ausente no terceiro ato, posto que não havia mais imagens disponíveis de seu rosto e seu corpo) se converte num revolucionário progressista, um homem contestador, para quem a luta pela igualdade se encontra acima das paixões burguesas. Pena para Alicia, presa aos braços possessivos de Uribe em algum local extraquadro.
Assim, a iniciativa que poderia soar como traquinagem, mero exercício de colagem de arquivos, adquire um teor reflexivo. Desconstrói-se a história de origem, mas também a idealização amorosa do cinema popular em prol de uma leitura questionadora da imagem do outro e do heroísmo no cinema. Inúmeras formas de política se cruzam aqui: a política de preservação, da luta de esquerda, dos afetos, da resistência pela arte. A imagem, viajando por conta própria entre diferentes registros, cores e tons, torna-se tão protagonista quanto Efraín. Talvez este sujeito incorpóreo, ressuscitado das cinzas (aí está a “qualidade fantasmagórica”), simbolize o cinema que renasce da deterioração e do esquecimento.
Além disso, Mudos Testemunhos representa a possibilidade de união entre diferentes gerações, diferentes épocas do cinema, diferentes gêneros e visões de mundo. Este conceito abraça o outro, devora-o, fagocita-o numa antropofagia voraz das imagens e dos sons. Soa tão conservador, na reprodução do triângulo amoroso, quanto vanguardista, na hora em que o incêndio reúne colagens e flashes dignos de um grande filme de terror. Dois diretores, dezenove curtas-metragens colombianos servindo de base (o longa-metragem não produz nenhuma imagem própria, cabe ressaltar), além de dezenas de textos literários e manifestos políticos de referência compõem uma obra sui generis, iconoclasta, revolucionária à sua maneira.
O longa-metragem utiliza o cinema para falar do mundo, mas também para refletir sobre o próprio cinema. Em outras palavras, demonstra a capacidade de se abrir ao outro enquanto pensa a respeito de si próprio, propondo imagens enquanto questiona as imagens obtidas, numa aproximação e um distanciamento simultâneos, contraditórios e deslumbrantes. Uma arte dos paradoxos, no sentido mais profundo do termo.