Tomorrow Is a Long Time (2023)

A desumanização

título original (ano)
Míng tian bi zuo tian chang jiu (2023)
países
Singapura, Taiwan, França, Portugal
gênero
Drama
duração
106 minutos
direção
Jow Zhi Wei
elenco
Leon Dai, Edward Tan, Jay Victor, Julius Foo, Lekheraj Sekhar, Harry Nayan, Neo Swee Lin
visto em
73º Festival de Cinema de Berlim (2023)

O pai Chua (Leon Dai) e o filho Meng (Edward Tan) levam uma vida dura, mas este não poderia ser considerado um período de crise para ambos. Isso se deve ao fato que todos os seus dias são igualmente difíceis, e eles parecem acostumados à opressão cotidiana. O mais velho, trabalhador numa fábrica de pesticidas, é explorado pelos patrões e acaba inalando os gazes tóxicos. O mais novo, estudante do Ensino Médio, é maltratado pelos colegas mais fortes, até ser coagido a entrar numa gangue e replicar o bullying contra terceiros.

Quando voltam para a casa, eles evitam compartilhar seu sofrimento: o que poderiam dizer que o outro já não soubesse? Por isso, efetuam suas refeições em silêncio, com o olhar perdido. A avó se encontra no hospital, em situação estável, ainda que preocupante. Tomorrow Is a Long Time parte de uma situação crônica, onde nenhum conflito parece se alterar para os protagonistas — nem melhorando, nem piorando. Adolescentes trocam uma violência pela seguinte, ao entrarem na vida adulta: da escola para o trabalho. A obra se inicia numa perspectiva niilista, para dizer o mínimo.

Tamanho pesar se expressa através de uma linguagem segura e rígida do cineasta Jow Zhi Wei. Ele privilegia os planos abertos e estáticos, valorizando tanto os espaços quanto os indivíduos — algo fundamental para se determinar a opressão exercida pelo meio. As cores são dessaturadas, sem muita textura, enquanto a fotografia privilegia a luz natural, homogênea e dispersa, com poucos focos de luz. Os almoços familiares e as visitas à avó acamada são retratados por enquadramentos idênticos, embora os amplos espaços permitissem novas escolhas de ângulo. Desta maneira, o autor reforça a aparência de dias repetidos, sem perspectiva de melhoria.

Os únicos instantes em que alguma forma de estilização toma conta do projeto surgem na fábrica, quando a fumaça lançada pelos ares, somada à contraluz da janela do galpão, provoca contornos belos e demarcados. Mesmo assim, que triste beleza nasce destas cenas: o instante mais rebuscado e elegante provém de um gás venenoso, responsável pela morte de trabalhadores exaustos. Junto às cenas do menino caminhando sem pestanejar rumo aos braços agressivos de seus algozes, o projeto transmite certa ironia, como se enxergasse uma pureza na resistência, ou uma virtude na entrega estoica à própria sina.

O homem está abandonado à própria sorte, tanto na cidade quanto na natureza selvagem. Nenhum colega ou empregador o ajuda na metade inicial, e nenhum deus ou militar o resgata na metade seguinte.

Num primeiro instante, o longa-metragem dialoga sobretudo com o conceito de incomunicabilidade, aplicado às multidões solitárias. Paira uma sensação letárgica de fracasso, significando que os esforços de ambos (no desempenho profissional para o pai, no cumprimento das regras para o filho) constituem uma ética pessoal totalmente inócua quanto inserida numa perspectiva social mais ampla. Por que se esforçar tanto, trabalhando um segundo turno e cedendo à pressão dos estudantes, se o resultado será adverso? Os heróis são condenados à derrota.

No entanto, uma guinada na metade da narrativa provoca uma grande surpresa, inesperada diante de um ritmo, até então, profundamente linear. Some o cenário urbano, entra em cena a floresta, onde Meng atua como soldado. Passaram-se anos, e o garoto se encontra num cenário de guerra. A elipse jamais será construída em detalhes nem imagens ao espectador: Jow Zhi Wei prefere que o espectador suponha algumas decisões por conta própria. Agora, o menino franzino empunha armas, camufla-se, esconde-se do fogo inimigo.

As sequências de guerra proporcionam os trechos menos satisfatórios da obra. Os atores parecem atuar num filme diferente daquele construído pela direção, e distinto daquele proposto pela montagem. O roteiro aponta para o perigo iminente (há tiros ao redor, colegas voltam com o corpo sangrando), no entanto, nada na condução sugere perigo. O adversário nunca dá as caras, e Meng aparenta passear a esmo pela natureza, ao invés de seguir qualquer estratégia ou comando. Este trecho possui uma aparência inusitada de sonho — esperamos o menino acordar a qualquer momento, deitado confortavelmente na cama de casa.

No entanto, a floresta é real, ainda que metafórica. O projeto troca o realismo social amargo, da primeira metade, por um viés metafísico, na segunda parte. Até o realismo fantástico se faz presente por meio do encontro mágico com um animal noturno. Agora, as escolhas do jovem se devem unicamente a ele, não aos desmandos de uma sociedade perversa. Ele determina se fica ou vai, se continua com o grupo ou se dispersa, se salva o colega ferido ou preserva a si próprio. Todas as ações serão efetuadas em silêncio, com exceção do belo encontro entre dois garotos à noite, quando confessam seus sonhos e desejos. 

Neste instante, o enquadramento espreme os rostos no terço inferior da imagem, revelando a mata, e tornando-os pequenos, meninos, insignificantes em comparação com o cenário. O cineasta e seu diretor de fotografia, Russell Morton, dominam muito bem as proporções e sugestões hierárquicas entre humanos e a natureza, baseados unicamente nas decisões de enquadramento, luz e profundidade de campo. Apenas o ritmo etéreo e a comunicação esparsa reúnem estas duas metades de filmes que poderiam pertencer a obras distintas.

Talvez Tomorrow Is a Long Time espere que as oposições se completem — a floresta representando o lado B da cidade, ou seja, seu avesso. A mensagem poderia ser ainda mais desesperançosa: o homem está abandonado à própria sorte, tanto na cidade quanto na natureza selvagem. Nenhum colega ou empregador o ajuda na metade inicial, e nenhum deus ou militar o resgata na metade seguinte. Até por isso, a conclusão bela e lacônica sugere que Meng tenha se fundido com a natureza, transformando-se numa parte integrante dos galhos e gramados. 

Neste fragmento, ele está totalmente despossuído de desejos e objetivos — a paz se encontra num sentimento de vazio, como se o ser humano compreendesse, enfim, a insignificância de sua posição na Terra, tal qual um super-homem nietzschiano. Feliz ou não, Meng se encontra em paz, pela primeira e última vez na narrativa. O longa-metragem se assemelha a uma meditação, uma proposta de encontro de si através da ruptura com a sociedade (o trabalho, a escola) e com as instituições (o exército) para cumprir apenas os instintos humanos mais básicos e primários do ego. 

Assim, o drama ecoa o termo de desumanização, tão bem retratado pelo escritor Valter Hugo Mãe no romance homônimo. Para além de uma falta de humanidade, trata-se do ato de desumanizar alguém, de lhe retirar o direito, a dignidade, a subjetividade. Estas violências ocorrem com uma naturalidade inabalável, inerentes à ordem das coisas. Meng e Chua são humanos, demasiadamente humanos, porém desumanizados pelos processos crônicos desta sociedade capitalista contemporânea. Eles se encontram em estratégias diferentes de fuga de si, pelo sacrifício e pelo martírio. Uma vez entregues ao calvário, podem descansar, para além do bem e do mal.

Tomorrow Is a Long Time (2023)
7
Nota 7/10

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