Na Teia da Aranha (2023)

Cinema é caos

título original (ano)
Geomijip (2023)
país
Coreia do Sul
gênero
Comédia
duração
135 minutos
direção
Kim Jee-woon
elenco
Song Kang-ho, Im Soo-jung, Oh Jung-se, Jeon Yeo-been, Krystal Jung
visto em
Cinemas

Kim (Song Kang-ho) é um cineasta em crise de meia-idade. Ele se projetou no cinema coreano graças ao sucesso de seu primeiro filme, e se sente pressionado para reproduzir uma obra de igual popularidade. Vive à sombra de seu mentor, o aclamado e premiado Shin (Jung Woo-sung), para quem, supostamente, acobertava infidelidades e demais escândalos em troca de oportunidades no cinema. Em meio à censura do regime militar nos anos 1970, Kim se habitou aos suspenses baratos, com atuações exageradas e um erotismo vulgar. Nunca foi considerado um grande artista.

Por isso, após novo projeto de aparência medíocre, ele vislumbra, num sonho, um desfecho muito melhor para a obra recém-concluída. Dois dias adicionais de filmagem, com os cenários ainda disponíveis, bastariam, em sua compreensão, para elevar a história de traição e vingança ao patamar de obra-prima. Ao homem desacreditado, esta oportunidade soa imperdível. Na Teia da Aranha se concentra, portanto, não exatamente na criação de um filme (como fariam a maioria das obras metalinguísticas), mas na correção de uma obra potencialmente ruim.

O diretor Kim Jee-woon, que assina o roteiro em parceria com Shin Yeon-shick, dispensa os detalhes deste longa-metragem fictício. Desconhecemos tanto o final anterior quanto a premissa básica do suspense. Os indícios espalhados nas refilmagens (armadilhas na floresta, perseguições com faca, humilhação dentro da mesma família) sugerem um folhetim desconexo. Aos censores, o cineasta fictício afirma estar desenvolvendo uma obra anticomunista. Aos produtores, explica que a refilmagem transformará a heroína numa figura feminista. A imagem da teia de aranha, que dá nome ao título, ganha uma releitura misteriosa, mas qual sentido ela possuía antes? Mistério.

Na Teia da Aranha ganha força ao assumir a caricatura enquanto linguagem. É uma pena que tamanha destreza seja aplicada a um roteiro de ambições mínimas.

O prazer desta comédia se situa nas trapalhadas convencionais de uma filmagem às pressas, não autorizada, com roteiro mal compreendido pelos atores e demais artistas. Parte-se do pressuposto que tudo que pode dar errado, dará, em níveis cômicos apropriados ao pastelão e ao humor do absurdo. Espere quiproquós novelescos, a exemplo da gravidez secreta e de duas mulheres se estapeando nos bastidores, somados a conflitos mais sinistros, como corpos sequestrados e mantidos numa sala, ou personagens possivelmente carbonizados numa cena mal-sucedida de incêndio. Do humor familiar às fronteiras do terror, nada é realmente proibido pelo dispositivo.

Tamanha aleatoriedade motiva tanto as vantagens quanto as fragilidades da narrativa. Por um lado, esta liberdade criativa (sem se sentir responsável por explicar tudo de antemão ao espectador) permite que as ações ocorram de modo surpreendente diante dos nossos olhos. Observamos todos os personagens à distância, sem sabermos antecipadamente o que desejam, nem o que pretendem fazer. Logo, a aparição de um homem fantasma e a cena envolvendo uma aranha supostamente verdadeira (embora claramente digital) nos pegam de surpresa e levam a questionar o registro da verossimilhança. Não somos levados a nos importar, de fato, com nenhum personagem ou suas ambições. Nem mesmo sabemos o que Kim pretende filmar ao longo dos dois próximos dias. Estamos mais próximos dos atores, atônitos, do que da mente do protagonista.

Por outro lado, este distanciamento conduz a certo senso de aleatoriedade. O espectador permanece alheio aos sucessivos dilemas, de modo a dificultar nossa torcida por qualquer desfecho das filmagens. Kim Jee-woon evita o senso de urgência (a percepção do tempo acabando, por exemplo), jamais justifica a necessidade da refilmagem e tampouco apresenta o que haveria de genial na versão alternativa concebida pelo herói. Ao final, testemunhamos, enfim, a imagem sonhada pelo diretor. Ela impressiona, sem dúvida, embora esteja desconectada de uma narrativa específica. Talvez seu significado fosse mais potente caso entendêssemos quem eram os personagens envolvidos na imagem macabra.

Mesmo assim, Na Teia da Aranha ganha força ao assumir a caricatura enquanto linguagem. A própria atriz questiona Kim, após cada tomada: “Mas não está exagerado?”. Isso permite que elementos meramente citados a princípio (o fogo, a escultura de um sapo, as aranhas) retornem com tal intensidade capaz de borrar os limites da comédia e do horror. Kim Jee-woon é certamente muito hábil na elaboração da tensão, assim como no manuseio dos espaços. É uma pena que tamanha destreza seja aplicada a um roteiro de ambições mínimas, mais preocupado em constituir um feel good movie levemente satírico do que uma obra marcada por qualquer arroubo autoral.

A iniciativa também pode ser lida enquanto metalinguagem, ou autobiografia fictícia. Não é por acaso que o cineasta cria a figura de outro cineasta, portando seu nome, lutando para reproduzir o sucesso gigantesco de uma obra do passado (no caso de Jee-woon, o excelente Eu Vi o Diabo, de 2010). A escolha de Song Kang-ho, ator-fetiche do diretor desde os primórdios da carreira, também permite enxergar no protagonista um alter-ego do autor, ridicularizando a própria situação em que se encontra. Após os louros pelo filme de terror de quinze anos atrás, o sul-coreano nunca mais obteve reconhecimento semelhante, e chegou a comandar projetos bastante desastrosos, a exemplo de O Último Desafio (2013), estrelado por Arnold Schwarzenegger.

Ao final, o longa-metragem tem pouco a dizer a respeito dos processos de produção audiovisual, ou do contexto de criação em um país aprisionado pela censura. O elemento que mais chama a atenção, conforme os trechos da refilmagem são apresentados ao espectador, é o fato de já estarem editados, cuidadosamente associados, numa versão final. Neste filme-dentro-do-filme, acompanhamos o diretor, o diretor de fotografia, os diretores de arte, os atores. No entanto, jamais presenciamos os montadores, nem o processo de montagem. Nestes filmes metalinguísticos, focados no espetáculo de filmar, pouco se pensa no momento posterior, menos glamourizado, de reflexão e articulação das imagens. O montador ainda consiste no profissional mais invisibilizado do cinema, quando pensado enquanto arte de contar histórias.

Na Teia da Aranha (2023)
6
Nota 6/10

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