Nem Deus É Tão Justo Quanto Seus Jeans (2025)

A (auto)piedade

título original (ano)
Nem Deus É Tão Justo Quanto Seus Jeans (2025)
país
Brasil
gênero
Comédia, Drama
duração
73 minutos
direção
Sérgio Silva
elenco
Igor Mo, Gilda Nomacce, Fernando Vitor, Mariana Ximenes, Julia Katharine, Gabriel Rett, Helena Ignez
visto em
28ª Mostra de Tiradentes (2025)

Marcos (Igor Mo) está mal. Na primeira cena, aparece nu, deitado na cama, com um grande esparadrapo colado no pulso, indicando a recente tentativa de suicídio. A partir deste momento, ele permanece fechado em casa, junto ao novo namorado, enquanto pensa no anterior, já falecido. O rapaz basicamente se desloca do quarto para a sala, da sala para a cozinha. A decisão da irmã mais velha (Julia Katharine) em deixar a cadela Baby sob seus cuidados por tempo indeterminado soa improvável (afinal, o protagonista mal consegue cuidar de si), porém, na incapacidade de recusar, ele tolera a companhia do animal.

A partir deste momento, o herói lamenta. Apieda-se pela vida que teve, pelo momento atual, pelo tédio que sente, pela dificuldade de comunicação com o parceiro Gabriel (Fernando Victor). Em paralelo, expõe as suas dores na terapia, diante de uma psicóloga pouco convencional (Gilda Nomacce) que procura retirá-lo do luto na base das provocações, gritos e ironias. Mesmo assim, permanece apático. Na prática, não possui objetivo ou conflitos — ele não deseja nada, nem faz nada. Nem mesmo cuida da cadela, apesar de se declarar apaixonado por ela. Marcos pensa sobre si, fala de si, reclama por si mesmo. Já o resto do mundo existe para ele.

Nem Deus É Tão Justo Quanto Seus Jeans se insere numa safra de cinema LGBTQIA+ onde a gentileza se confunde com autocondescendência. Posto que o personagem sofre, é preciso retirar dele qualquer forma de obrigação ou ação, para que ele possa apenas sofrer. O rapaz não estuda, não carrega pendências do trabalho (nem mesmo uma ligação telefônica). Não possui obrigações familiares, louça na pia, objetos da cachorra para comprar. Tampouco precisa fazer as compras, ou qualquer outro tipo de tarefa que, numa chave minimamente verossímil, qualquer indivíduo em sofrimento ainda precisaria fazer. O longa-metragem concebe o luto e a depressão enquanto parêntese da vida cotidiana — um luxo, digamos.

Nem Deus É Tão Justo Quanto Seus Jeans se insere numa safra de cinema LGBTQIA+ onde a gentileza se confunde com autocondescendência.

A abordagem do diretor Sérgio Silva consiste numa mistura de romantismo e existencialismo. É difícil mergulhar nos diálogos longuíssimos, antinaturais e afetados. Todos os personagens se expressam da mesma maneira, combinando aforismos com frases de efeito e pensamentos a respeito da vida, da eternidade, do amor, do tudo, do nada. “Será que eu já não vou conseguir ficar sem você?”, declara Marcos na cozinha ao namorado apático. Falam do “combustível inflamável, ou aquilo que chamam paixão”. “Pelo jeito, a angústia não tem limites, nem medida”. O jovem declama, às vezes para si mesmo, em voz alta: “Eu odeio foto de celular”

Obviamente, existe generosa dose de humor, assumida pelos criadores. A tendência a falar de si próprio remete ao estilo de Woody Allen nos anos 1990, ou mesmo de certa comédia francesa, autoparódica, estrelada por figuras burguesas clamando por um pouco mais de amor a uma dezena de coadjuvantes que tão-somente lhe fornecem amor e cuidado durante o filme inteiro. Busca-se trazer leveza para o tema da morte e do suicídio através destas tiradas absurdas, injetando ludicidade no dia a dia. Em consequência, atinge-se uma maneira de confrontar o problema sem confrontá-lo de fato; passar o dedo levemente sobre a ferida, porém, sem cutucá-la. O título sintetiza bem este estilo.

No entanto, a construção carece de relevo, textura, variação. Marcos nunca evolui enquanto personagem, nem a irmã (Julia Katharine), o namorado, ou mesmo o fantasma do ex — algo que dificulta a tarefa para os atores. Eles seguem se encontrando em cenas idênticas, intercambiáveis, quando proferem as mesmas frases longuíssimas e retóricas. Gabriel entra e sai de cena sem provocar nenhuma transformação na trama, assim como Baby. Como conceber um mundo tão estático e modorrento para um personagem recém-confrontado à finitude, cercado por propostas de mudança ao redor (a cadela, o novo namorado, a terapia)? Todos começam e terminam cada cena exatamente iguais. E o filme, também.

Esteticamente, o longa-metragem busca algumas estripulias de pouca justificação conceitual, exceto pela aparência de traquinagem, capaz de reforçar o humor egoico. A janela (formato da imagem) se estreita, chegando eventualmente ao quadrado (1:1). Durante uma conversa, Marcos e Gabriel se encontram em proporções diferentes no interior do enquadramento. Na dança de Babyhumana (Mariana Ximenes), as cores neon e os animais do aquário buscam atribuir certa fluidez à figura apaixonada por samba-canção. Aliás, esta personagem soa tão desconexa do restante da trama que parece habitar um curta-metragem à parte, incluído acidentalmente pela montagem no longa-metragem sobre Marcos.

Nem Deus É Tão Justo Quanto Seus Jeans estaria procurando se comparar à simplicidade e ao romantismo profundo (assumidamente cafona) do samba-canção? Tentaria propor algum formalismo de composições mais rigorosas a partir dos tableaux-vivants da cena inicial? Ou o humor mais físico, exagerado, através do cruising fantasma? A estrutura aponta para diversos caminhos que permanecem no domínio da piscadela, da brincadeira inconsequente — vide os letreiros que organizam a trama, e mesmo a frase inicial, “Este filme brasileiro não será preservado”. Trata-se de uma comicidade dos tempos de redes sociais: pequenas piadas de posts, do tipo que se vê, sorri, e passa à postagem seguinte.

No final, resta uma peça suplementar à extensa leva de filmes terapêuticos, nos quais os cineastas se colocam em cena, literal ou figurativamente, no intuito e exporem e expiarem suas dores pessoais. Procuram, assim, o valor de uma verdade, da humildade, da sinceridade. Apenas na 28ª Mostra de Tiradentes, Uma Montanha em Movimento e Um Minuto É uma Eternidade para Quem Está Sofrendo seguem caminhos semelhantes. Na safra de estreias recentes, aproxima-se de 13 Sentimentos e Música para Morrer de Amor. Existe uma vertente do cinema gay, de classe média, que busca se afagar com uma dose de amor-próprio.

Nem Deus É Tão Justo Quanto Seus Jeans (2025)
4
Nota 4/10

Zeen is a next generation WordPress theme. It’s powerful, beautifully designed and comes with everything you need to engage your visitors and increase conversions.