Este filme surpreende desde a abertura, na maneira de apresentar personagens, espaços, e especialmente ao ditar o ritmo do drama. A textura da pele de uma cobra é apresentada de modo tão aproximado que remete a uma abstração, ainda que o movimento do animal ilustre com clareza a noção de perigo. Após uma cena longuíssima envolvendo Ale (Chico Diaz), o chefe de uma boca de fumo, e seu pupilo Rivelino (Gabriel Knoxx), entram em cena flashes curtos de personagens ainda sem nome, num fluxo vertiginoso. Desde o princípio, a obra demonstra interesse em brincar com texturas, volumes e geografias, deixando o espectador em constante estado de alerta.
Deste modo, conhecemos ao mesmo tempo a dúzia de figuras que compõem o universo de Noites Alienígenas e os locais por onde transitam: as ruas estreitas das comunidades limítrofes do Rio Branco, as casas modestas, as igrejas evangélicas, as festas populares, as bocas de fumo, a floresta. Não há hierarquia entre pessoas e lugares, ou mesmo entre os protagonistas entre si. O diretor Sérgio de Carvalho possui a ambição tão nobre quanto arriscada de elaborar um caleidoscópio incluindo jovens brancos, negros e indígenas, filhos e pais, traficantes e consumidores.
Ao invés da tradicional abordagem metonímica (quando se elegem um ou dois protagonistas capazes de representar a situação global), opta-se por um olhar de pretensões oniscientes e onipresentes. Este ponto de vista generoso sustenta o tom de urgência ao se encontrar em diversos lugares simultaneamente, oferecendo apenas ao espectador a capacidade de testemunhar a todos, em paralelo. Como cúmplices silenciosos (nunca somos convidados a julgá-los moralmente por suas ações), enxergamos aquilo que nenhum personagem, sozinho, vê.
O drama adota a narrativa em perpétuo movimento, tanto nos planos-sequência onde personagens se deslocam (a impressionante caminhada de Paulo pelas ruas) quanto nos fragmentos colados e alternados de cenas menores (o slam, quando Rivelino intimida Paulo, ou a festa em que Beatriz flerta com o cantor). O ritmo flui num filme-processo, do tipo em que os personagens se desenvolvem conforme a narrativa avança, cabendo ao espectador compreendê-los aos pedaços, durante a experiência. Talvez somente na cena final, chocante em impacto emocional e no trabalho de câmera, conheçamos um pouco melhor aquelas figuras em cena, além de outras, ilustradas por sua ausência, e traduzidas pela dor dos outros.
Noites Alienígenas produz um encantamento pela junção entre as melhores virtudes da espontaneidade e do controle.
Enquanto isso, o espectador descobre um Brasil raras vezes presente nas telas dos cinemas, focado em grupos sociais marginalizados nas representações do país. Muitos filmes tendem a ilustrar comunidades indígenas em separado dos grupos brancos, ou os traficantes à distância dos artistas, por exemplo. O longa-metragem se constrói justamente na costura destes núcleos, quando um garoto indígena se torna dependente de drogas, e os garotos do tráfico frequentam as festas do slam, apreciam um desenho de seu rosto e demonstram carinho pela namorada.
Existe uma saudável desconstrução de preconceitos a respeito de cada segmento social, sobretudo nesta região onde o Brasil original encontra uma ideia fracassada e opressora de modernidade, concretizada pelas milícias, as facções e o poder paralelo, na ausência de um Estado que assuma as funções de controle e providência de bens e recursos. “É o crime atrás do progresso”, explica um rapaz, numa fala que pode soar irônica a princípio, até se tornar bastante séria poucos minutos depois. Nenhuma destas personagens representa o mal, nem a perversão dos costumes, apenas uma tentativa (torta, desesperada, e a única disponível) de se emancipar social e financeiramente.
Carvalho trabalha o filme coral de maneira equilibrada e coesa, de modo que os atores novatos apresentem um grau de despojamento tão precioso quanto a experiência dos veteranos. Enquanto Chico Diaz compõe um traficante inclusivo, movido por regras de compaixão ao outro (em oposição ao estereótipo do líder sanguinário, obrigatório nos filmes de favela); Gabriel Knoxx, Adanilo Reis e Joana Gatis oferecem um corpo presente, sem vaidades, manejando falas incrivelmente naturalistas, fáceis para a boca de cada um.
Noites Alienígenas produz um encantamento pela junção entre as melhores virtudes tanto da espontaneidade quanto do controle. Por um lado, sabe explorar o dinamismo dos grupos de amigos em rodas de hip hop, e dos traficantes provocando-se, num trabalho que honra a liberdade de cada ator em cena, com a câmera se ajustando aos movimentos e falas. Por outro lado, jamais transmite a impressão de aleatoriedade, excesso nem desnível na representação dessas estórias paralelas. Os planos-sequência comprovam a coreografia precisa da câmera, ao passo que a montagem brilhante de Raimundo Higino jamais deixa o espectador curioso quanto a algum personagem ausente nas imagens.
Isso porque há um problema comum às tramas corais: como ocupar todos os protagonistas nas passagens de tempo, de modo que estejam ocupados mesmo quando não os vemos? “E o que estarão fazendo os outros quatro personagens, enquanto observo este aqui?”, pode-se perguntar, com frequência, em projetos do tipo. Aqui, em contrapartida, nota-se a facilidade na transição de olhares e subtramas. Algumas figuras são esquecidas apenas quando concluem, aos olhos da trama, seus conflitos pessoais (caso de Sandra com o filho e ex-companheiro). Com os demais, seguimos suas aventuras enquanto soam inconclusivas. A câmera se move junto daqueles que permanecem em movimento.
A metáfora do alienígena, da ameaça que vem de fora, também se desenvolve com calma e precisão no interior da trama. Primeiro, surge num diálogo de Ale, e depois nos desenhos de Rivelino, além do formato da caixa d’água remetendo ao disco voador. Enfim, no clímax, o símbolo reúne os personagens pelas luzes e os sons fora de quadro. O jovem assassinado será “abduzido”, superando simbolicamente a morte através da continuidade num espaço distante. Os aliens ilustram a fuga, a possibilidade de sonhar com algo diferente. Eles representam o fim para o garoto pragmático; um maravilhamento ao traficante sonhador, e se fazem inexistentes para o sujeito viciado de drogas, incapaz de sonhar ou enxergar algo no horizonte.
Noites Alienígenas se encerra como uma obra ousada, corajosa na abordagem do tema e no uso da linguagem. Ao invés de optar pela viagem simbólica ou pelo naturalismo, navega na fronteira entre ambos. Nesta dosagem de elementos, técnicas e estilos, encontra um refinamento raríssimo para um longa-metragem de estreia. Alguns críticos de cinema de décadas atrás falavam dos criadores que possuem “gesto de cineasta”, por superarem a mera filmagem do roteiro, a construção burocrática de cada cena de acordo com as necessidades da produção.
Sérgio de Carvalho seria um destes autores, capaz de refletir a estética, o discurso e a construção de cada imagem, cada enquadramento, cada silêncio. Nenhuma sequência soa elaborada às pressas, tendo sobrevivido à montagem “porque precisou ser assim”, “porque deu problema na filmagem aquele dia”, “porque este foi o melhor take”. Nota-se a segurança e o vigor de um projeto que nunca se desculpa, nem se sustenta na humildade, pelo contrário. A potência jamais se dissipa, da imagem de abertura à imagem final. Esta obra constitui um acontecimento único, e desperta curiosidade imediata para os próximos passos do cineasta.