O Acontecimento (2021)

A guerra das mulheres

título original (ano)
L’Événement (2021)
país
França
gênero
Drama
duração
100 minutos
direção
Audrey Diwan
elenco
Anamaria Vartolomei, Luàna Bajrami, Louise Orry-Diquéro,
Louise Chevillotte, Kacey Mottet Klein, Sandrine Bonnaire, Pio Marmaï, Anna Mouglalis, Alice de Lencquesaing, Fabrizio Rongione
visto em
Festival Varilux de Cinema Francês 2022

Nas primeiras cenas, Anne (Anamaria Vartolomei) é vista com as amigas, falando sobre a vontade de fazer sexo pela primeira vez. Elas discutem a mecânica do ato, o rapaz ideal. Nos instantes seguintes, mencionam a masturbação, o horror decorrente de uma possível gravidez, a promiscuidade presumida de uma colega de turma. Uma fotografia pornográfica circula em sala de aula. Elas observam o corpo umas das outras no banho. 

Em O Acontecimento, pensa-se e fala-se em sexo o tempo inteiro. O tema central do roteiro — a gravidez de Anne, e seu desejo de abortar, apesar da proibição legal — é antecipado ao espectador a partir da primeira cena, e não tarda a se materializar em imagens. Poderíamos conhecer melhor esta garota através de seus desejos para o futuro, pelo relacionamento com os pais ou a vontade de se tornar escritora. Ela será restrita, no entanto, ao corpo feminino em busca de autonomia.

Escrito por uma mulher e dirigido por outra, a partir da história real vivida pela escritora Annie Ernaux, o projeto foge às armadilhas comuns ao subgênero “drama de aborto”. Em primeiro lugar, retira a questão moral existente em comédias conservadoras como Juno (2007), por exemplo. A protagonista nunca hesita em interromper a gestação. Assim que recebe o diagnóstico do médico, profere a frase: “Faça alguma coisa”. Cena após cena, ela demonstra uma convicção inabalável no direito de escolha.

Em segundo lugar, a estudante universitária foge às representações de mártir, sofredora, vítima de um episódio cruel. Ela fez sexo, gostou do encontro casual, e nem sequer pretende compartilhar os fatos com o pai da criança. Afinal, é ela quem porta o feto. A cineasta Audrey Diwan impede qualquer possibilidade de choro, piedade por parte do espectador ou da jovem em relação a si própria. Ela se move com a certeza de um soldado em batalha, buscando automaticamente o alvo. Em diversos aspectos, a narrativa se assemelha de fato a um filme de guerra.

Talvez, para evitar hesitações chorosas e supostos “instintos maternos”, a produção constrói uma heroína bruta até demais. Vartolomei encara médicos e assistentes com os olhos vidrados, sem piscar; ela lança frases velozes e ríspidas, e caminha por lugares proibidos como se marchasse. Diante dos pais e de um professor carinhoso, a quem pudesse revelar o segredo e compartilhar a dor, ela se cala. As criadoras elegem o estoicismo e a resiliência como valores máximos para a garota.

Diwan retira do aborto o componente de choque, de discussão social e dilema coletivo. Anne quer abortar, e fará o possível para conseguir seu objetivo. A escolha cabe apenas a ela.

A temporalidade pode justificar esta escolha. Por se situar nos anos 1950, o aborto constituía um tabu ainda maior do que hoje. Mesmo assim, é preciso ter em vista um Brasil atual governado por religiosos que querem obrigar meninas estupradas a terem o filho do agressor; e os Estados Unidos retrocedendo e retirando um direito nacional pela primeira vez, ao revogarem Roe vs. Wade. Por isso, o texto evita mencionar aborto, sexo, feto, menstruação, curetagem e termos relacionados. Fala-se “daquilo”, dos “procedimentos”, de “cuidar do assunto”. A linguagem carrega uma dose de censura.

Estranhamente, Diwan evita saturar este cenário de elementos que remetam diretamente ao período de 70 anos atrás. Certo, a ausência de celulares e computadores ajudar a acreditar num tempo passado, porém nenhuma referência mais clara em termos de figurinos, acessórios, decoração das casas e modelo dos carros permite pensar neste mergulho histórico. A textura das imagens, perfeitamente digital e nítida, seria propícia aos dramas do século XXI. Ao espectador menos atento, talvez o longa-metragem pareça contemporâneo: as jovens atrizes falam e se portam como garotas dos nossos dias. Navegamos por uma cronologia cuidadosamente dispersa.

Enquanto isso, a direção de fotografia aposta na câmera-personagem consagrada, e explorada à exaustão, por diretores como os irmãos Dardenne. A imagem cola-se ao rosto, ao corpo e à nuca de Vartolomei, seguindo-a por onde for: em suas caminhadas na natureza, nos corredores da escola, nas visitas a médicos. Mesmo quando a ação central ocorre ao lado, permanecemos rigidamente colados a Anne, para que a adesão do espectador ao ponto de vista da garota ocorra quase por W.O.: nenhum outro personagem disputa o controle da narrativa.

Os últimos anos têm sido prolíficos em grandes dramas a respeito do aborto, dirigidos por mulheres e corrigindo o tratamento condescendente do olhar masculino padrão. O magnífico Nunca Raramente Às Vezes Sempre (2020) combinou drama social, econômico e dilemas psicológicos; o agressivo 24 Weeks (2016) se voltou às questões jurídicas; e mesmo o cômico Call Jane (2022) transformou a decisão feminina numa bandeira política fundamental.

Diante destes exemplos de graus variados de ousadia e radicalidade, O Acontecimento soa clássico, frontal até demais na abordagem do tema. Não existe uma busca por metáforas ou pela poesia, como as mãos dadas com a amiga em Nunca Raramente Às Vezes Sempre, nem o grotesco, próximo do cinema de gênero, dos instantes de suspense em 24 Weeks. Mesmo o clímax no banheiro da escola, apesar de fortíssimo e explícito, vira os olhos do foco do conflito assim que possível.

Resta um drama bem conduzido, muito elegante em suas imagens e rígido nas composições. Algumas reações soam previsíveis, a exemplo da possível tendência suicida na praia; e da raiva incontrolável ao lavar louças. Trata-se de recursos pouco criativos. Em contrapartida, Diwan retira do aborto o componente de choque, de discussão social e dilema coletivo. Anne quer abortar, e fará o possível para conseguir seu objetivo. A escolha cabe apenas a ela. Todo o resto será secundário.

O Acontecimento (2021)
7
Nota 7/10

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