O Cangaceiro da Moviola consiste um filme-homenagem. O diretor Luís Rocha Melo estima que o montador Severino Dadá, aclamado após décadas de trabalho no audiovisual brasileiro, mereceria um registro de seus feitos em obras como O Amuleto de Ogum (1975), de Nelson Pereira dos Santos, e Ladrões de Cinema (1977), de Fernando Coni Campos. Por isso, o cinema lhe deveria este esforço em retorno, espécie de recompensa pelos serviços prestados.
O autor enxerga a obra enquanto documento de uma época, um âmbar para preservar na memória cultural os feitos de um homem extraordinário. A imagem volta a significar o ça a été de Roland Barthes, ou seja, a prova de que algo realmente existiu, em alguma época, diante das câmeras. A arte se faz arquivo, prova de uma verdade, e também veículo de jornalismo — posto que o diretor acredita que o espectador, ignorante quanto à importância do protagonista, precisaria ser ensinado, ou lembrado, de seus feitos. O cinema se converte em museu.
É importante frisar a quantidade evidente de afeto envolvido nesta criação. Luís Rocha Melo amava Severino Dadá, que amava Geraldo José, que amava o som do cinema, e assim por diante. Estas pessoas apaixonadas por cinema fazem filmes sobre a paixão pelo cinema, voltados a cinéfilos, recheados de citações a grandes diretores, grandes filmes, cenas marcantes, etc. Nestes casos, é comum que os méritos recaiam a esta ciranda retroelogiosa, para além do conteúdo e das formas desenvolvidos pelo cineasta. O amor se torna ponto de partida e ponto de chegada; hipótese e conclusão.
Ora, cabe a este artigo destacar algumas escolhas de linguagem, para além do prazer cinéfilo de reencontrar figuras e obras queridas do audiovisual brasileiro. Em primeiro lugar, o documentário encontra seus aspectos mais fracos no terço inicial, o que talvez desperte má impressão para o restante da narrativa, quando o projeto melhora substancialmente. Alguns colegas críticos se levantaram e abandonaram a sessão diante desta abertura desanimadora, o que indica uma escolha infeliz de roteiro e estrutura por parte dos autores.
Conforme o filme se despe da necessidade de passar informações e listar fatos, faz jus à vivência do sujeito bem-humorado e expansivo.
Isso se deve ao fato que o longa-metragem começa de maneira descritiva, linear e cronológica, tal qual uma reportagem televisiva. A vertente jornalista determina que se parta da infância de Dadá, com fotos de menino, relembrando o cotidiano com os pais, o contato inicial com cinema, as ruas da cidade onde vivia. Há pouco material de arquivo para justificar este mergulho, e as fotografias, bastante desgastadas pelo tempo, não recebem qualquer forma de tratamento para aguentarem os zoom-ins e deslocamentos em detalhes da imagem.
O espectador se depara então com uma edição protocolar, pelo menos nesta fase inicial, explorando à exaustão as fotografias de limitado interesse histórico ou estético. Contenta-se em deslizar à esquerda e à direita, em busca dos rostos mencionados por Dadá, na função de narrador em off. O filme chega a repetir fotografias, prova da insuficiência dos arquivos, e reforça a impressão de que as falas do protagonista são muito mais importantes do que qualquer registro imagético. Aqui, a imagem se limita a rechear o som, a referenciá-lo de maneira servil, despertando pouco interesse por si própria.
Felizmente, o filme se reergue a partir do segundo ato, quando chegamos enfim aos trabalhos de Dadá na fase adulta. A montagem se torna menos dura e linear, dissipando o aspecto solene. A incorporação de anedotas da época transformam o montador numa figura mais próxima do espectador. Os quiproquós na edição, as brigas com Sganzerla, os cortes na película com uma peixeira e os encontros com novos profissionais num beco da cidade retiram o cinema de uma lista de fatos de época (o documentário-Wikipédia) para privilegiar o humanismo do protagonista.
Melo poderia ter investigado a fundo os traços autorais deste montador. Sabemos que dava grande importância aos ruídos e à trilha sonora, mas o que teria trazido em termos de ritmo, de propostas de dissociação som-imagem? Que cenas importantes teria modificado, e como teria ressignificado o trabalho de diretores já estabelecidos? O que pensaria a respeito dos montadores contemporâneos, e das obras recentes do cinema brasileiro? O filme perde a oportunidade de enxergá-lo enquanto pensador do audiovisual.
Na reta final, entram os comentários elogiosos de cineastas e demais trabalhadores do cinema, relembrando a importância seminal deste homem para a nossa cinematografia — algo dispensável, nesta altura da trama. Entretanto, o documentário terá estabelecido a noção de trajetória inteiramente consagrada ao cinema. Dadá é bem construído enquanto aventureiro autodidata, que dedicou a vida ao ofício, expandindo sua atividade (atuando, dirigindo) e seguindo ativo, com um olhar tão dedicado quanto despojado à profissão.
Conforme o filme se despe da necessidade de passar informações e listar fatos, faz jus à vivência do sujeito bem-humorado e expansivo, através de um cinema de baixo orçamento, porém corajoso, que representa a jornada de Dadá. No entanto, teria sido desejável que o documentário se dedicasse muito mais à montagem e ao diálogo com os traços do montador. De que maneira a linguagem de O Cangaceiro da Moviola poderia evocar aquela desenvolvida pelo artista?
Afinal, nada soa menos instigante do que homenagear um pioneiro, ousado e à frente de sua época, por meio de uma linguagem comportada e domesticada. Pelo menos, em suas ambições modestas de rememoração, o resultado cumpre a promessa de nos lembrar do profissional e gravá-lo em imagens, para a posteridade. As ambições autorais de Melo são deixadas em segundo plano diante da ambição humilde de valorizar o protagonista. Julgando pela resposta calorosa na sala de cinema da Mostra de Tiradentes, a proposta de uma homenagem dócil conquistou o público local.