O Clube das Mulheres de Negócios (2024)

Crônica de um Brasil brucutu

título original (ano)
O Clube das Mulheres de Negócios (2024)
país
Brasil
Gênero
Comédia, Terror, Fantasia
duração
95 minutos
direção
Anna Muylaert
elenco
Rafael Vitti, Luis Miranda, Cristina Pereira, Irene Ravache, Louise Cardoso, Katiuscia Canoro, Grace Gianoukas, Polly Marinho, Helena Albergaria, Shirley Cruz, Ítala Nandi, Maria Bopp, Verônica Debom, André Abujamra, Fernando Billi, Tales Ordakji
visto em
18º CineBH (2024)

Num mundo de fantasia, as mulheres se encontram no topo da cadeia alimentar. Grosseiras e agressivas, protegem umas às outras enquanto objetificam os maridos mais jovens, que jamais ocupam posições de poder. Eles vestem roupas justas, valorizando os músculos. Já elas podem ter o corpo que desejam, pois o dinheiro e o poder lhes torna suficientemente sedutoras. Eles precisam aceitar o assédio sexual calados, pois as agressoras minimizam seus crimes em nome do direito de possuir o corpo alheio.

A simetria deste jogo é evidente. O dispositivo inicial de O Clube das Mulheres de Negócios poderia se esgotar na duração de uma esquete. Caso a diretora e roteirista Anna Muylaert se ativesse à brincadeira de explicitar o óbvio — o machismo estrutural, o patriarcado, a misoginia, etc. —, restaria no mero estágio da constatação, avisando, a quem interessar possa, que problemas sociais existem. Não investigaria, a priori, as causas, consequências nem alternativas para escapar a tais desigualdades.

Felizmente, outros aspectos e recursos narrativos chegam para atribuir interesse à mistura de farsa e fábula. Em primeiro lugar, a opção por uma estética kitsch, de afronta. Um desconforto profundo decorre do encontro entre imagens elegantíssimas (num scope bem cuidado, de fotografia impecável) e as atitudes vulgares das mulheres. Na cinematografia brasileira, os “filmes do meio” (produções que escapam tanto à busca estética quanto às simplificações das obras comerciais) são tão raros que nos levam a acreditar na incompatibilidade desta convivência entre a máxima polidez e a máxima incivilidade.

O Clube das Mulheres de Negócios agrada pela filiação a uma proposta estética tão tipicamente brasileira. As ferramentas da sátira, da fantasia, do horror e da não-binaridade se revelam as mais potentes na busca pela representação de nosso Brasil brucutu.

Em segundo lugar, a situação absurda logo cede ao terror, um gênero propenso aos exageros, aos humor grotesco, à extrapolação do real. Quando onças começam a perambular pelo clube, causando mortes sangrentas e não-denunciadas às autoridades (porque é preciso manter as aparências), o longa-metragem encontra recursos adequados para representar a opressão de gênero no Brasil, ao invés de apenas nos alertar sobre sua existência. Os bichos se transformam em elemento disruptivo, capaz de destruir um mecanismo opressor e estável, percebido como natural.

A natureza se torna, portanto, um elemento central na discussão da cineasta — seja a natureza humana, seja aquela de fauna e flora, ambas percebidas como maiores do que as vaidades e picuinhas de algumas bispas, empresárias, advogadas e celebridades da extrema-direita. Saímos do micro para o macro, ou do individual para o coletivo. A narrativa parte de uma obsessão pelo controle (via dinheiro e sexo) para se entregar ao caos absoluto de feras contra humanos. De repente, as mulheres que nunca se acreditaram em perigo, apesar dos bichos à solta, percebem que o delírio de grandeza possui limites. Curiosamente, Muylaert abraça a máxima fantasia para trazer suas personagens de volta à realidade.

Por isso, o roteiro oscila entre debates claríssimos e outros, muito mais inteligentes do que aparentam ao primeiro olhar. Sim, a fala de Cesárea (Cristina Pereira) a respeito da fundação de nosso país em violência e corrupção resulta desinteressante, limitando-se a verbalizar aquilo que já estava suficientemente claro pelo tom da comédia. As duas metáforas finais (envolvendo a nota de dinheiro e a troca de gênero numa bicicleta) são fraquíssimas, posto que mastigam de maneira didática aquilo que o discurso já havia transmitido inúmeras vezes. Neste momento, a autora parece não acreditar na mínima capacidade de compreensão de seu espectador.

Em contrapartida, algumas opções livres e alucinantes oferecem os melhores instantes da obra. Numa forte cena de assédio, nota-se uma tintura preta escorrendo pela lateral do cabelo da agressora, como se ela própria secretasse algum chorume. As máscaras derretem, literalmente, e a monstruosidade se assume enquanto tal. Levemente ferida, Norma (Irene Ravache) é enquadrada ao fundo da imagem, em segundo plano, enquanto um urubu a acompanha em destaque (imagem abaixo). Esta revolução dos bichos (o que inclui cobras, sapos e outras pragas) interessa muito mais enquanto simbologia, por transmitir um sentido menos evidente.

As onças, é claro, constituem os ícones centrais desta fábula. O elemento que realmente interessa em O Clube das Mulheres de Negócios consiste nesta certeza da impunidade e da segurança, mesmo que os bichos corram pelos jardins. Compreende-se que as empresárias exijam a presença de funcionários para servi-las (momento em que a obra se aproxima de Propriedade, mas com um grão de loucura suplementar), porém, a tranquilidade diante do problema mostra o quão desconectadas elas estão em relação à sociedade. Por sua perspectiva, nada poderia detê-las. As onças seriam mero detalhe perante à possibilidade de criar “a maior pista de rave das Américas”. 

Pela ótica de uma bolha alienada, compreende-se melhor as caricaturas oferecidas pela diretora. Katiuscia Canoro encarna uma versão feminina de Bolsonaro, igualmente boçal e ofensiva (com suas versões pessoais do “imbroxável” e da “gripezinha”); Shirley Cruz encarna a autoridade religiosa que se beneficia do autoritarismo conservadora (imagine um cruzamento de Malafaia, Feliciano e Edir Macedo). Aos homens, resta a (in)versão da “loira burra e gostosa” (encarnada por Rafael Vitti) e do jornalista confrontado a uma autoridade muito maior do que a sua (Luís Miranda). Criticar o resultado pelo exagero seria tão lógico quanto se queixar da comicidade de uma comédia: a caricatura constitui meio e finalidade para Muylaert. 

Esta mesma desconexão do naturalismo justifica a construção artificial das onças, através de efeitos visuais parcialmente competentes, embora inverossímeis. Os bichos possuem aparência de simulacro, porém, o mesmo pode ser dito dos figurinos, das coreografias musicais, dos gritos de “Buceta” e “Grelo duro”, da suruba pansexual sadomasoquista onde se esbalda a personagem de Ítala Nandi. A afetação se faz linguagem, a insanidade se torna meio para uma finalidade crítica. Quanto mais a cineasta se afasta de uma configuração razoável das relações sociais, melhor comenta nossos tempos de eterna exceção.

Além disso, O Clube das Mulheres de Negócios agrada pela filiação a uma proposta estética tão tipicamente brasileira. O filme escancara os conceitos de antropofagia, de tropicalismo, de “malandragem”, de jeitinho brasileiro. De maneira lúdica e onírica (a aventura inteira se assemelha a um grande pesadelo), revisita o êxtase fundador de Macunaíma, o erotismo carnavalesco de Bye Bye Brasil, a “guerra dos sexos” esgarçada pelas chanchadas da Atlântida. As feras digitais de Muylaert aproximam-se daquelas de Juliana Rojas em As Boas Maneiras (com Marco Dutra) e Cidade; Campo; além de aderir ao grito queer e não-realista de obras como Levante, Se Eu Tô Aqui É por Mistério, Pirenopolynda e Onde Está Mymye Mastroiagnne?. As ferramentas da sátira, da fantasia, do horror e da não-binaridade se revelam as mais potentes na busca pela representação de nosso Brasil brucutu.

O Clube das Mulheres de Negócios (2024)
7
Nota 7/10

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