Num mundo de fantasia, as mulheres se encontram no topo da cadeia alimentar. Grosseiras e agressivas, protegem umas às outras enquanto objetificam os maridos mais jovens, que jamais ocupam posições de poder. Eles vestem roupas justas, valorizando os músculos. Já elas podem ter o corpo que desejam, pois o dinheiro e o poder lhes torna suficientemente sedutoras. Eles precisam aceitar o assédio sexual calados, pois as agressoras minimizam seus crimes em nome do direito de possuir o corpo alheio.
A simetria deste jogo é evidente. O dispositivo inicial de O Clube das Mulheres de Negócios poderia se esgotar na duração de uma esquete. Caso a diretora e roteirista Anna Muylaert se ativesse à brincadeira de explicitar o óbvio — o machismo estrutural, o patriarcado, a misoginia, etc. —, restaria no mero estágio da constatação, avisando, a quem interessar possa, que problemas sociais existem. Não investigaria, a priori, as causas, consequências nem alternativas para escapar a tais desigualdades.
Felizmente, outros aspectos e recursos narrativos chegam para atribuir interesse à mistura de farsa e fábula. Em primeiro lugar, a opção por uma estética kitsch, de afronta. Um desconforto profundo decorre do encontro entre imagens elegantíssimas (num scope bem cuidado, de fotografia impecável) e as atitudes vulgares das mulheres. Na cinematografia brasileira, os “filmes do meio” (produções que escapam tanto à busca estética quanto às simplificações das obras comerciais) são tão raros que nos levam a acreditar na incompatibilidade desta convivência entre a máxima polidez e a máxima incivilidade.
O Clube das Mulheres de Negócios agrada pela filiação a uma proposta estética tão tipicamente brasileira. As ferramentas da sátira, da fantasia, do horror e da não-binaridade se revelam as mais potentes na busca pela representação de nosso Brasil brucutu.
Em segundo lugar, a situação absurda logo cede ao terror, um gênero propenso aos exageros, aos humor grotesco, à extrapolação do real. Quando onças começam a perambular pelo clube, causando mortes sangrentas e não-denunciadas às autoridades (porque é preciso manter as aparências), o longa-metragem encontra recursos adequados para representar a opressão de gênero no Brasil, ao invés de apenas nos alertar sobre sua existência. Os bichos se transformam em elemento disruptivo, capaz de destruir um mecanismo opressor e estável, percebido como natural.
A natureza se torna, portanto, um elemento central na discussão da cineasta — seja a natureza humana, seja aquela de fauna e flora, ambas percebidas como maiores do que as vaidades e picuinhas de algumas bispas, empresárias, advogadas e celebridades da extrema-direita. Saímos do micro para o macro, ou do individual para o coletivo. A narrativa parte de uma obsessão pelo controle (via dinheiro e sexo) para se entregar ao caos absoluto de feras contra humanos. De repente, as mulheres que nunca se acreditaram em perigo, apesar dos bichos à solta, percebem que o delírio de grandeza possui limites. Curiosamente, Muylaert abraça a máxima fantasia para trazer suas personagens de volta à realidade.
Por isso, o roteiro oscila entre debates claríssimos e outros, muito mais inteligentes do que aparentam ao primeiro olhar. Sim, a fala de Cesárea (Cristina Pereira) a respeito da fundação de nosso país em violência e corrupção resulta desinteressante, limitando-se a verbalizar aquilo que já estava suficientemente claro pelo tom da comédia. As duas metáforas finais (envolvendo a nota de dinheiro e a troca de gênero numa bicicleta) são fraquíssimas, posto que mastigam de maneira didática aquilo que o discurso já havia transmitido inúmeras vezes. Neste momento, a autora parece não acreditar na mínima capacidade de compreensão de seu espectador.
Em contrapartida, algumas opções livres e alucinantes oferecem os melhores instantes da obra. Numa forte cena de assédio, nota-se uma tintura preta escorrendo pela lateral do cabelo da agressora, como se ela própria secretasse algum chorume. As máscaras derretem, literalmente, e a monstruosidade se assume enquanto tal. Levemente ferida, Norma (Irene Ravache) é enquadrada ao fundo da imagem, em segundo plano, enquanto um urubu a acompanha em destaque (imagem abaixo). Esta revolução dos bichos (o que inclui cobras, sapos e outras pragas) interessa muito mais enquanto simbologia, por transmitir um sentido menos evidente.
As onças, é claro, constituem os ícones centrais desta fábula. O elemento que realmente interessa em O Clube das Mulheres de Negócios consiste nesta certeza da impunidade e da segurança, mesmo que os bichos corram pelos jardins. Compreende-se que as empresárias exijam a presença de funcionários para servi-las (momento em que a obra se aproxima de Propriedade, mas com um grão de loucura suplementar), porém, a tranquilidade diante do problema mostra o quão desconectadas elas estão em relação à sociedade. Por sua perspectiva, nada poderia detê-las. As onças seriam mero detalhe perante à possibilidade de criar “a maior pista de rave das Américas”.
Pela ótica de uma bolha alienada, compreende-se melhor as caricaturas oferecidas pela diretora. Katiuscia Canoro encarna uma versão feminina de Bolsonaro, igualmente boçal e ofensiva (com suas versões pessoais do “imbroxável” e da “gripezinha”); Shirley Cruz encarna a autoridade religiosa que se beneficia do autoritarismo conservadora (imagine um cruzamento de Malafaia, Feliciano e Edir Macedo). Aos homens, resta a (in)versão da “loira burra e gostosa” (encarnada por Rafael Vitti) e do jornalista confrontado a uma autoridade muito maior do que a sua (Luís Miranda). Criticar o resultado pelo exagero seria tão lógico quanto se queixar da comicidade de uma comédia: a caricatura constitui meio e finalidade para Muylaert.
Esta mesma desconexão do naturalismo justifica a construção artificial das onças, através de efeitos visuais parcialmente competentes, embora inverossímeis. Os bichos possuem aparência de simulacro, porém, o mesmo pode ser dito dos figurinos, das coreografias musicais, dos gritos de “Buceta” e “Grelo duro”, da suruba pansexual sadomasoquista onde se esbalda a personagem de Ítala Nandi. A afetação se faz linguagem, a insanidade se torna meio para uma finalidade crítica. Quanto mais a cineasta se afasta de uma configuração razoável das relações sociais, melhor comenta nossos tempos de eterna exceção.
Além disso, O Clube das Mulheres de Negócios agrada pela filiação a uma proposta estética tão tipicamente brasileira. O filme escancara os conceitos de antropofagia, de tropicalismo, de “malandragem”, de jeitinho brasileiro. De maneira lúdica e onírica (a aventura inteira se assemelha a um grande pesadelo), revisita o êxtase fundador de Macunaíma, o erotismo carnavalesco de Bye Bye Brasil, a “guerra dos sexos” esgarçada pelas chanchadas da Atlântida. As feras digitais de Muylaert aproximam-se daquelas de Juliana Rojas em As Boas Maneiras (com Marco Dutra) e Cidade; Campo; além de aderir ao grito queer e não-realista de obras como Levante, Se Eu Tô Aqui É por Mistério, Pirenopolynda e Onde Está Mymye Mastroiagnne?. As ferramentas da sátira, da fantasia, do horror e da não-binaridade se revelam as mais potentes na busca pela representação de nosso Brasil brucutu.