Propriedade (2022)

Enterre seus vivos

título original (ano)
Propriedade (2022)
país
Brasil
Gênero
Drama, Suspense
duração
100 minutos
direção
Daniel Bandeira
elenco
Malu Galli, Tavinho Teixeira, Ane Oliva, Edilson Silva, Zuleika Ferreira, Carlos Amorim, Anderson Cleber, Sandro Guerra, Roberta Lúcia, Nivaldo Nascimento, Amara Rita Magalhães, Marcílio Moraes, Andala Quituche
visto em
26ª Mostra de Cinema de Tiradentes

É uma questão de luta de classes. Um empresário e a esposa decidem passar uns dias no campo, enquanto ela se recupera mentalmente de um sequestro sofrido pouco tempo atrás, quando teve um revólver empunhado contra a cabeça. Enquanto isso, na fazenda, os trabalhadores descobrem que o local será fechado e vendido. Todos estão demitidos. E que não reclamem, pois senão os documentos pessoais continuam guardados atrás do cofre-forte do casarão. Saiam quietinhos, e se deem por contentes por terem trabalhado com o patrão generoso. Mas eles não se conformam. Começa a guerra.

Propriedade é claríssimo neste embate, que não tarda a começar. Em termo de ritmo, representa o ápice do cinema de ação, numa trajetória progressiva e angustiante, que não relaxa um segundo sequer. O diretor Daniel Bandeira extrai do gênero de ação sua impulsividade, a propensão ao choque, à grandiosidade e também à inconsequência — pessoas morrem e, segundos depois, todos se esqueceram do corpo, pois a batalha continua lá fora. A surpresa de cada cena é suplantada pela surpresa da cena seguinte.

Curiosamente, o ponto de vista se divide. A princípio, acreditamos estar do lado da estilista Tereza. Ela possui a postura rígida, esforçando-se para conter um ataque de pânico que pode chegar a qualquer minuto — que grande atriz, aliás, é Malu Galli! Seus olhos inspiram terror, escondido por trás de uma aparência de normalidade esforçada, polida, digna de uma burguesia que busca evitar vexames, pois não seria de bom tom. No entanto, ela deixa o desespero transparecer em cada cena.

Entretanto, no ato seguinte, são os funcionários da fazenda que tomam a dianteira. Eles discutem a injustiça da demissão, o direito a partes da terra, a uma soma em dinheiro, a outra opção de trabalho. Tereza, veja só, será mencionada apenas como “a madame”, com desprezo evidente. Por que ela teria o direito de acalmar seus traumas numa chácara arborizada, enquanto os demais precisam se virar com a dor deste luto? No final, trata-se de espantar a morte, ou simbolicamente, de superá-la: a estilista tenta esquecer que quase morreu, e os peões imaginam que, sem aquele cargo, morrerão. O roteiro coloca, portanto, a vida de uma contra a vida dos outros. Sabemos que apenas um dos lados sobreviverá.

O longa-metragem demonstra prazer em ver o circo pegar fogo, sem necessariamente temer por algum lado. Ele nem sequer lamenta o ocorrido, posto que se diverte bastante com ele.

Seria comum tomar as dores de um dos lados, ou escolher um protagonista no grupo operário. No entanto, o diretor Daniel Bandeira se recusa a fazê-lo. Eles permanecerão uma massa coesa, às vezes indistinta. Alguns desses personagens serão apenas esquecidos pela trama — culpa do desafio imenso de ter dezenas de figuras em cena, o tempo inteiro. As crianças somem por tempo excessivo, assim como outros personagens fundamentais (a mulher representada por Clébia Sousa, e representante de uma vertente conciliatória). O cinema de ação (e também suspense, drama mas, sobretudo, ação) possui esta tendência a desvalorizar as relações interpessoais para sobrecarregar o conflito. É o que ocorre aqui. De quantos nomes de personagens, entre os trabalhadores, você consegue se lembrar ao final da sessão?

A pulverização do ponto de vista torna o posicionamento político do próprio filme um tanto difuso. Propriedade demonstra piedade pela mulher traumatizada, mas também compreende o levante dos empregados injustiçados. Ele sublinha a aflição da mulher trancada num carro blindado, recusando-se a sair para não sofrer o ataque dos rebeldes. (No fundo, este seria a principal definição da direita ideológica: a tolerância em abdicar da liberdade em nome da segurança). No entanto, tolera os assassinatos e atos cruéis que virão do grupo enraivado, e também da estilista. O longa-metragem demonstra prazer em presenciar o circo pegar fogo, sem necessariamente temer por algum lado. Ele nem sequer lamenta o ocorrido, posto que se diverte bastante com instantes sangrentos, membros decepados, crueldade infantil e outros.

Na correria, o roteiro abraça alguns lugares-comuns desgastados do suspense-horror, que preferiríamos não encontrar num retrato de pretensão realista acerta da sociedade brasileira. Quando Tereza se refugia no carro-cofre, os opositores tentam martelar o carro, mas nenhuma alma cogita furar os pneus para impedi-la de partir. O carro havia feito viagem tranquila e parado num posto de gasolina, mas chegando na fazenda, imediatamente estava com o tanque vazio. Como pretendiam voltar de lá? Ao dominar seu agressor com uma arma branca, a mocinha sai correndo ao invés de continuar golpeando até deixá-lo inconsciente. É claro que o homem passa a persegui-la segundos depois.

As metáforas de tal intensidade também merecem questionamento. A fumaça colocada no interior do carro, para forçar “a madame” a sair, remete tanto às câmaras de gás quanto ao caso recente do homem morto num camburão-câmara improvisado pela polícia. (Em defesa do projeto, as filmagens ocorreram muito antes deste caso). A introdução do rato como técnica de tortura evoca o imaginário da ditadura, quando figuras do calibre de Carlos Brilhante Ustra introduziam ratos na vagina de mulheres grávidas. A mão cortada de uma criança resgata o imaginário fascista do cinema de ação brasileiro: “Tiro na mão ou tiro no pé?”.

O fato que os espectadores tenham vibrado e pulado de alegria diante destas cenas soa preocupante: o filme teria responsabilidade pela empolgação do público diante da violência praticada pelos personagens? Estaria incitando tais atos, tolerando tacitamente uma rebelião pelo prisma do sadismo — mais do que a mera tomada das terras, ou a revolta contra os opressores? Temos o direito de nos lambuzar no sangue daqueles que nos oprimem? Em outras palavras, a partir de quando os fins justificam os meios, em contornos maquiavélicos? Brotaram entre a imprensa e o público algumas comparações com Bacurau, por motivos óbvios (premissa semelhante, obras pernambucanas, vários profissionais presentes em ambos os projetos), mas talvez a maior afinidade se estabeleça com Tropa de Elite

O filme de ação político de José Padilha apresentava cenas de violência extrema, que empolgaram o espectador e formaram ícones da carnificina, a exemplo do Capitão Nascimento. O diretor e o ator Wagner Moura juram de pés juntos que fizeram um filme contra este personagem. Parte considerável do público, num Brasil pré-Bolsonaro, o considerou um mito do justiçamento contra pobres, e do desprezo pelos direitos humanos. Que responsabilidade possuem os criadores, neste caso? Em mesma chave, qual a ética e a moral de Propriedade, ao transformar a vingança de classes numa defesa da tortura enquanto reparação histórica? Espectadores direitistas e extrema-direitistas podem se amparar desta obra tanto quanto os moderados de esquerda. Aí nasce o perigo.

Diversos elementos contribuem a esta leitura do prazer retórico da violência, encerrada em si própria. Dimas e Zildo, dois homens-bicho, animalizados e desprovidos de razão, servem apenas para tocar o terror, dando vazão a impulsos homicidas não disfarçados. A cada rompante de ira de Dimas, o grupo o tolera e segue em frente. Interessante que nunca decidam prendê-lo, fechá-lo num cômodo — em última instância, tornam-se cúmplices de seus atos. A garota da fazenda cogita se vender à madame por alguns belos tecidos que possa vestir. A coletividade soa desunida, caótica. De repente, cada um sustenta motivações próprias, que este cinema de ação não investiga, pois aquilo que não transparece no corpo, não lhe interessa. A psicologia fica em segundo lugar.

Ao final, o longa-metragem teria demonstrado empatia e piedade por todos os personagens, ou por nenhum deles? Partindo de um xadrez político evidente, ele chega ao niilismo fabular, interrompendo-se no meio do conflito. O roteiro deixa as pontas soltas (para além do típico final aberto), porque prefere segurar o público neste deslumbramento do sangue, ao invés de convidá-lo a refletir, ao final, sobre o que viu. Há tese (o lado dos burgueses), antítese (a revolta dos trabalhadores), porém não há síntese. A obra se encerra no clímax, incapaz de tirar as conclusões de sua própria empreitada. Ao final, diante de aplausos efusivos do público de pé na Mostra de Tiradentes, fica a pergunta: deveríamos nos felicitar de tamanha adesão a um filme brasileiro, ou temer a identificação com a carnificina enquanto única proposta política?

Propriedade (2022)
5
Nota 5/10

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