Nós começamos assistindo ao crime — ou, pelo menos, a uma parte dele. A imagem se posiciona do lado de fora da casa, em frente à fachada, enquanto escutamos tiros na parte interna. A jovem Madeleine Verdier (Nadia Tereszkiewicz) sai do local, apressada, inquieta. Logo, podemos associar a garota à tragédia, ainda que se desconheça sua implicação na morte de um poderoso produtor de cinema. A câmera evita mergulhar dentro da casa, tema importante a François Ozon.
Assim como em outras obras do cineasta, sugere-se que nunca saberemos ao certo o que se passa na vida dos indivíduos entre quatro paredes. Nas histórias anteriores do criador, encontramos traição, ciúme, crime, transexualidade, bebês voadores. O diretor possui uma fascinação pelo desencontro entre vida pública e vida privada, ou pela capacidade de pessoas “comuns” em esconderem seus desejos sórdidos por trás da aparência de normalidade. Ele tem levado o tema às telas, obsessivamente, nos registros múltiplos do drama clássico, o melodrama, o suspense policial, o suspense erótico, a farsa, o absurdo, a fantasia.
Aqui, apela para a paródia e a crônica de costumes. Em O Crime É Meu, as protagonistas são duas farsantes de domínios diferentes: uma atriz e uma advogada. Ambas mentem, protegidas pelas regras de seu ofício. Para Madeleine, é natural tornar-se outra pessoa no intuito de entreter as plateias. Quanto melhor mentir, mais talentosa será. Para Pauline Mauléon (Rebecca Marder), é preciso criar a narrativa mais favorável aos clientes, embora tenha que distorcer fatos, atenuar dados. Sua função também consiste em conquistar os jurados, o juiz, a opinião pública. Ambas são aproximadas pela capacidade de criadoras de suas próprias ficções, pela lógica exploradora do show business.
O diretor se delicia com as metáforas capazes de coincidir o teatro e a advocacia. […] O humor decorre da lacuna entre real e ficção, ou entre fato e encenação.
O diretor se delicia com as metáforas capazes de coincidir o teatro e a advocacia, ou a arte e as leis. No escritório do promotor, as portas se fecham tal qual uma cortina vermelha sobre o palco. No tribunal, a jovem, acusada de assassinato, confessa o crime, porém afirma ter boas razões para tal. Afinal, foi abusada sexualmente pelo sujeito perverso, e precisava proteger a sua honra. Ora, logo percebemos que ela não foi a verdadeira responsável pelo falecimento de Montferrand (Jean-Christophe Bouvet), mas quem se importa? A versão agrada ao público, sedento por espetáculo, e pode servir para lançar a carreira adormecida das jovens garotas.
O humor decorre da lacuna entre real e ficção, ou entre fato e encenação (grosseiramente modificada) dos acontecimentos. O espectador é colocado em posição onisciente: ainda que não saibamos ao certo o que ocorreu na tarde dos disparos, temos plena consciência de que outra pessoa se vingou do produtor, e que a versão de Pauline e Madeleine não passa de um teatro de variedades. Diante de uma plateia, em pleno julgamento, sublinham a mentira com um texto decorado e encenado. Do outro lado do processo, o promotor (um excelente Michel Fau, canastrão, machista e frágil na medida certa) afirma que, caso a garota não seja condenada, todos os homens estarão em perigo face a amantes sanguinárias.
Ele tem razão, de certa forma. O Crime É Meu expande ao máximo o preceito da arte enquanto enganação tacitamente aceita por pessoas dispostas a ser enganadas. Logo, outras mulheres cogitam matar seus namorados apáticos para se beneficiarem dos holofotes. Surgiria a revolução das mulheres via homicídio! O investigador tolo, de poucas habilidades (Fabrice Luchini) sabe que não possui provas suficientes, porém deseja ver o caso encerrado o quanto antes. O milionário caipira Palmarède (Dany Boon, o protótipo do nortista francês divertindo-se com o papel do sulista) entende que seu dinheiro está investido numa causa perdida, mas consente com a fraude na qual o colocam. A verdadeira autora do crime, Odette Chaumette (Isabelle Huppert) deseja apenas tirar algum proveito financeiro da história toda, e o futuro sogro de Madeleine, Sr. Bonnard (André Dussollier), acata com novas mentiras pelo bem de seus negócios.
Em consequência, não existe, nessa galeria colorida e absurda de personagens, nenhuma vítima ou algoz dignos deste nome. Eles se tornam os manipuladores e predadores uns dos outros, numa ciranda de reviravoltas. “Talvez eu esteja perdendo a noção do bem e do mal”, confessa a heroína, de voz doce e aparência angelical. Ela estaria mentindo? Dizendo a verdade? Quem se importa? Existe um grau de cinismo nos personagens, admitido e reforçado pelo texto e pelas atuações. Ozon conta, uma vez mais, com os maiores nomes do cinema francês reunidos na mesma obra, interpretando paródias de si próprios (Huppert como a diva detestável, Luchini encarnando o homem emasculado).
A propósito de homens emasculados, o cineasta pratica sua típica desconstrução de gêneros e poderes. Os homens serão patéticos e frágeis, facilmente manejados pelas mulheres mais espertas do que eles. Os sujeitos são desprovidos de desejo sexual, de inteligência e voz de comando — vide Gustave, Palmarède, André, Sr. Bonnard. Já as ardilosas personagens femininas dedicam maior afeto umas às outras do que aos maridos e namorados paspalhões. O roteiro insinua com frequência que as duas garotas possuem um relacionamento lésbico (elas dormem juntas numa cama pequena, “para se esquentarem”), enquanto as duas jovens travam um duelo de admiração e chantagem com a atriz veterana Odette.
Em se tratando do ano de 1935, as referências ao cinema mudo se tornam constantes. O diretor se esforça em transformar o longa-metragem numa fábula acerca do cinema em rápida transformação, necessitando novas estrelas e casos espetaculares para ocuparem tanto os jornais quanto os palcos. Ao invés de nos mostrar o que realmente aconteceu no dia do crime, prefere apresentar meia dúzia de versões possíveis, alegada por partes adversas. Nestes casos, a imagem retorna ao preto e branco, a textura incorpora as ranhuras da película, a velocidade se acelera tal qual o cinema de manivelas, e as atrizes atuam sem diálogos, num estilo propício aos primórdios da sétima arte.
Os fatos soam ridículos, ou melhor, são ridicularizados. A ninguém importa a verdade — sobretudo, não a Ozon. Ao invés da revelação do real, comum às tramas policiais onde se busca um criminoso, temos a ficção e as ficções-dentro-da-ficção. Para o autor, o prazer se encontra na capacidade de se perder neste labirinto de descaramento. O sujeito morto nunca é retratado na condição de vítima, pelo contrário. Resta a impressão que, tal qual um romance de Agatha Christie, todos os personagens assassinaram Montferrand, ou poderiam tê-lo feito, ou gostariam de fazê-lo. Estes movimentos se equivalem, por esta perspectiva. É isso que realmente importa: a desconstrução da moral rumo a um niilismo debochado.
Talvez a premissa da comédia se assemelhe, até demais, àquela do musical Chicago (2002). Este mundo de assassinas que utilizam a imprensa em nome da fama; a união entre duas mentirosas para lotar os palcos do teatro e o mundo de corrupção dos anos 1920-30, adaptado de uma peça famosa, aproxima as tramas. No entanto, enquanto Rob Marshall e a peça homônima reforçavam a culpa das mulheres, que eram realmente duas homicidas perversas, no texto francês, há uma notável admiração pelas figuras sem dinheiro, sem fama nem poder, que utilizam as brechas do sistema para vencê-lo.
Chicago enaltecia o espetáculo da vingança conjugal; O Crime É Meu o ridiculariza. O norte-americano venerava a ausência de moral das duas mulheres, já o francês prefere criticar o sistema onde duas jovens precisem recorrer a tais artimanhas para conquistarem uma vida digna. O vencedor do Oscar criava “adoráveis pecadoras”, num maniqueísmo evidente, enquanto o sucesso popular de Ozon estima que a capacidade de matar esteja democraticamente distribuída em todos os setores da sociedade. Partindo da mesma chave do humor, e da paródia dos costumes, o francês se mostra muito mais complexo na maneira de enxergar as relações de classe e gênero.