O Dia que Te Conheci (2023)

O amor e outros acidentes

título original (ano)
O Dia que Te Conheci (2023)
país
Brasil
gênero
Comédia, Romance
duração
71 minutos
direção
André Novais Oliveira
elenco
visto em
Mostra de São Paulo 2023

A todos os criadores que reclamam sobre a impossibilidade de fazer uma comédia inteligente, engraçada e popular sem recorrer aos estereótipos frequentes (gordos em roupas justas, loiras burras, gays para alívio cômico, negros barraqueiros, etc.), seria interessante que assistissem a O Dia que Te Conheci. Aos cinéfilos e espectadores que dividem os filmes brasileiros entre comédias rasgadas e dramas-de-festival, também.

Dentro da sala de cinema da 47ª Mostra de São Paulo, as pessoas riam em alto e bom-tom, da primeira à última cena. Na saída, conversavam entre si, destacando as passagens preferidas, os diálogos mais marcantes, ou identificando um tio, amigo ou namorado que age exatamente como os personagens do filme. É visível o grau de identificação provocado pela obra com o público, que deixou a sessão com um sorriso estampado no rosto. Raros projetos conquistam tal efeito junto ao espectador.

Ao mesmo tempo, o diretor e roteirista André Novais Oliveira não faz nenhuma piada. Esqueça as tiradas de texto, proferidas por humoristas diante de uma casa-cenário com a qual praticamente não interagem. O humor, neste caso, nasce do absurdo do cotidiano banal de pessoas de classe média-baixa. Ninguém se torna milionário da noite para o dia, nem tem uma mãe com bobes no cabelo, falando aos gritos. 

Na saída da sessão, os espectadores conversavam entre si, destacando as passagens preferidas, os diálogos marcantes. É visível o grau de identificação com o público.

Pelo contrário, é fácil se identificar com estas figuras que precisam acordar cedo, pegar o ônibus para o emprego distante, discutir com o chefe. Em comum, são meio desajustados, tomam antidepressivos (mas têm vergonha de falar abertamente sobre isso), reclamam do trânsito, brigam com a melhor amiga por bobagens. O cineasta sempre foi exímio cronista do cotidiano, prestando atenção a elementos ínfimos que outros roteiristas e diretores dispensariam. 

Aqui, amigos conversam enquanto um deles corta as unhas do pé, depois esquecem o copo de café sujo cor-de-âmbar do lado do sofá, e pegam uma cerveja no copo de plástico para beber na rua, em frente ao bar. Perguntam ao dono do boteco se o pastel sai rápido, porque estão apressados, e recebem uma resposta afirmativa, embora o sujeito ainda nem tenha acendido o fogão para esquentar aquele óleo saturado, boiando na panela há dias. O diretor conhece realidade de que está falando e, ao mesmo tempo, nutre profundo carinho por ela e por estas pessoas.

Logo, ninguém será ridicularizado ou humilhado em cena. O bibliotecário Zeca (Renato Novaes) e a funcionária Luisa (Grace Passô), que trabalham na mesma escola, constituem pessoas comuns inseridas num mundo de desajustes — nunca o contrário. É insano precisar acordar cedo todos os dias para pegar a única condução capaz de atravessar Belo Horizonte até a periferia. É inaceitável marcar o reencontro com uma amiga que nunca aparece. É cansativo atravessar um trânsito tão intenso, ou furar o pneu e não encontrar uma única pessoa capaz de prestar ajuda.

No entanto, eles seguem em frente, sem reclamar da ordem superior das coisas. Demitidos, acatam a má notícia e programa a procura por um novo emprego na semana seguinte. Diante do ônibus quebrado, apenas esperam pelo próximo. Eles não representam pessoas passivas, mas, ao mesmo tempo, o que poderiam fazer? O diretor privilegia estas figuras cansadas, distantes de qualquer heroísmo ou idealização. Enquanto diversos criadores buscam histórias de exceção, centradas em personagens que efetuam algo de que ninguém mais seria capaz, Oliveira percorre o caminho oposto, buscando a beleza dos indivíduos ordinários.

Até por isso, a questão de saúde mental adentra a trama sem torná-la pesada, nem levantar nenhuma bandeira. Ri-se da dificuldade de falar a respeito, das doses de remédios utilizados por um e por outro e, sobretudo, do fato que os medicamentos constituem um fator essencial para unir Zeca e Luisa. A dupla atravessa dias repletos de problemas, e contrários à ideia do “lindo momento em que encontrei o amor da minha vida”. A ironia decorre da existência de uma troca humana preciosa em meio à precariedade, entre indivíduos pouco hábeis no flerte e no traquejo social.

Por isso, pode-se falar em uma comédia romântica pouco romântica — pelo menos, no que diz respeito à pré-concepção tradicional do romance. O gênero tem se baseado nas estruturas mais formulaicas e previsíveis do cinema, apresentando o amor enquanto salvação a existências tristes. Ora, Oliveira surpreende no percurso, foge aos clichês esperados e prioriza um pequeno acaso, incapaz de salvar alguém ou retirá-los de seus problemas. No dia seguinte, Zeca ainda precisará encontrar um emprego, e Luisa, enfrentar o trânsito da cidade. 

A recusa do espetáculo e da magia representa, ironicamente, a ferramenta capaz de criar uma poesia possível, uma beleza palpável porque singela, naturalista. A obra ocupa meros 71 minutos — o mínimo necessário para ser considerado um longa-metragem —, e dispensa tramas paralelas, mal-entendidos capazes de gerar uma reaproximação ao final, ou o alívio cômico através dos melhores amigos dos protagonistas. Prefere o humor singelo de acompanhar a dupla caminhando por avenidas estranhamente vazias à noite. Há encantos na cidade.

Eles estarão praticamente sozinhos em cena, atraindo-se por falta de opções, ou porque espelham sua solidão e carência no outro. Unem-se pela vontade de passar uma noite gostosa (o flerte desencontrado na casa de Zeca é hilário), aproveitar a oportunidade, pois não teriam mais nada para fazer naquela noite. Talvez não tenham encontrado o amor duradouro. A possibilidade de um contentamento instantâneo e inconsequente também provoca risos, pela fricção entre expectativas (uma história marcante e profunda) e concretizações (uma noite mínima passada juntos).

No elenco, Grace Passô apresenta uma personagem diferente daquela a que nos acostumamos a vê-la no cinema recente — mesmo naquele de André Novais Oliveira, em Temporada (2018), por exemplo. Ela compõe uma mulher sedutora, abrupta nos gestos, capaz de rir e chorar na mesma cena (belo plano-sequência filmado pelas costas dos personagens). Renato Novaes oferece uma versão deste sujeito-médio que tanto interessa ao criador: um homem sem qualidades nem defeitos excepcionais. Um pouco irresponsável no trabalho, mas, em nenhum momento, uma má figura. 

Já as imagens fazem rir por si próprias: seja o plano longuíssimo de uma estante aparentemente banal (a sequência de abertura); a corrida entre dois amigos-que-acabaram-de-se-conhecer rumo ao ônibus; a disposição dos corpos em busca de afeto na casa de Zeca, na transição do sofá à cama e ao banheiro. A exemplo dos longas-metragens anteriores do cineasta, as funções criativas se mostram tão boas quanto invisíveis, incapazes de chamar atenção a si próprias. Utiliza-se uma luz de aparência natural, figurinos cotidianos, ruídos banais da rua e do trânsito. 

A montagem contempla as trocas — as cenas se tornam engraçadas justamente porque demoram e aprofundam o desconforto —, mas jamais se arrasta; a trilha sonora favorece o tom de excepcionalidade, pelo uso de orquestras sonhadoras, porém jamais sublinha emoções nem condiciona sentimentos que o espectador compreenderia por conta própria. A cena final será uma representação perfeita desta ironia cotidiana: uma sorte e um problema simultâneos, pelas ruas da cidade, envolvendo os pequenos esforços de gente comum. 

Em última instância, rimos da aproximação truncada entre Zeca e Luisa porque reconhecemos neles um outro de nós mesmos. Rimos de nossa própria inabilidade, nossos problemas, nossos embates regulares. Este cinema não promove um escapismo rumo à vida como ela poderia ser, mas uma capacidade de refletir a respeito dos nossos desajustes, exatamente como são. 

O Dia que Te Conheci (2023)
9
Nota 9/10

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