O Espaço Infinito (2023)

Ela sente muito

título original (ano)
O Espaço Infinito (2023)
país
Brasil
gênero
Drama
duração
78 minutos
direção
Leo Bello
elenco
Gabrielle Lopes, Welligton Abreu, Luciana Domschke, Adriana Lodi, Sergio Sartório, Gaivota Naves, Gabriel Sabino, Isabela Ferrari, Anna-Maria Hefele
visto em
Cinemas

Imagine uma pessoa louca. Pense no sentido clínico do termo, longe das conotações preconceituosas: um indivíduo em surto, com algum grau de perda da razão, dos sentidos, uma desconexão com a compreensão do mundo capaz de ser considerada, patologicamente, enquanto forma de loucura. Talvez você já tenha enfrentado problemas de saúde mental, ou convivido com um próximo manifestando sintomas de depressão, esquizofrenia, transtornos psicóticos e afins. 

Caso tenha passado por esta experiência, deve saber que as crises da pessoa afetada são esporádicas. Elas podem variar em intensidade, frequência, manifestações. O sujeito em questão atravessa instantes de completa normalidade, na acepção comum da palavra, antes de mergulhar em sequências de profunda angústia, ou talvez violência contra si e contra os outros. 

Hollywood, no entanto, gosta de tratar pessoas “loucas” como um grande espetáculo dramático: são figuras que babam, gritam, choram e fazem os outros chorar — um excelente veículo narrativo para conflitos, portanto, além de catalisadoras ideais em dramas e filmes de terror baseados no deleite de assistir ao sofrimento alheio. Lembre de Atração Fatal, Garota, Interrompida, Midsommar: O Mal Não Espera à Noite.

O brasileiro O Espaço Infinito se filia a esta imagem da loucura. Por que conceber uma personagem interessante e talentosa, digna da nossa identificação e que, por acaso, manifesta sintomas de distúrbios mentais, quando você pode ter alguém em estado permanente de catarse? Nina começa o drama em surto, e 70 minutos depois, segue em surto. Ela chora em posição fetal no chão do banheiro. Ela se corta; tenta se afogar. Ela abandona o filho pequeno, e come minhocas num buraco.

O Espaço Infinito se volta à ciência-espetáculo, assim como elege a loucura-espetáculo. Nina não possui múltiplos focos de atenção, dentre os quais residem as estrelas. Ela é uma louca que ama estrelas.

A direção solicita à atriz Gabrielle Lopes que faça “cara de louca”, recorrendo ao imaginário estereotipado da pessoa com o olhar ora perdido, ora vidrado. A agressividade se transmite na intensidade no rosto e na maneira brusca com que desvia os olhos e dispensa ajuda. Não há pausas para esta mulher. Sabemos que ela conduz estudos de astrofísica, mas o roteiro nos priva de qualquer elemento construtivo desta subjetividade para além da doença. Seria uma aluna interessada? Por que esta área da física a fascina em particular? Seria ela uma boa mãe, antes dos sintomas? Uma pessoa sensível? Mistério. Para o cineasta Leo Bello, ela se converte num sintoma ambulante. Nina só lhe interessa enquanto estiver sofrendo.

Agora imagine um(a) cientista. Novamente, você pode ter colegas e familiares físicos, químicos, pesquisadores em tecnologias, engenharias. Talvez você seja esta pessoa. Saberá que os cientistas constituem pessoas comuns, dotadas de um interesse particular. Mesmo a inteligência aguçada, se for o caso, não as transforma necessariamente em seres antissociais, obcecados por números e equações, considerados estranho por todos ao redor. Hollywood, por sua vez, prefere a imagem do gênio prejudicado por sua inteligência, atormentado por ela. Quanto mais ama os números e as fórmulas, menos se prova capaz de manter um relacionamento amoroso, uma família.

O drama nacional também prefere esta visão pejorativa da inteligência e do conhecimento enquanto perigosos, pois alienantes. Nina, é claro, demonstra paixão por estrelas desde pequena. Por isso, tem estrelas como brinquedos, abraça-se a uma estrela numa gruta. Ela sai correndo do banho, enrolada numa toalha, por ter a brilhante ideia de analisar as estrelas no instante exato que a vontade lhe vem. Ela vive cercada por papéis, livros e números, desdenhando do carinho do namorado, do filho, do pesquisador da tese. Dorme mal, e enlouquece, em partes, devido à paixão pelos estudos. 

Jamais percebemos nenhuma evolução na pesquisa, nem um caráter eminentemente profissional nesta abordagem. O Espaço Infinito se volta à ciência-espetáculo, assim como elege a loucura-espetáculo. Por isso, a mulher nua se banha num lago refletindo estrelas. Internada num hospital psiquiátrico, chora até conseguir a sua estrela de volta. Os criadores compreendem que a mulher se interessa pelo tema, porém estimam que ela se interesse apenas por isso. Nina não possui múltiplos focos de atenção, dentre os quais residem as estrelas. Ela é uma louca que ama estrelas.

A mão pesadíssima na condução da psicologia dos personagens tenta se atenuar através da abordagem “sensorial”, poética. Isso significa que a mulher se deita de modo sensual sobre um chão de pétalas, e então sobre um tapete vermelho, e então sobre o solo, e então sobre a água. Ela dança com criaturas místicas, assustadoras; escuta sons perturbadores e dissonantes durante o banho. Deste modo, transfere-se à estética o estado interno da astrofísica. Ora, esta escolha, que pareceria pertinente, apenas sublinha uma característica já martelada à exaustão pelo roteiro e elenco.

“Sinto que a minha alma está sendo devorada por um cão de três cabeças”. Nina, silenciosa na maior parte do tempo, expressa-se em charadas e imaginários de violência. Ela segue esta curiosa tradição de Ninas sofredoras do cinema brasileiro, o que inclui Nina (2004), de Heitor Dhalia; Era uma Vez (2008), de Breno Silveira; O Pergaminho Vermelho (2020), de Nelson Botter Jr.; Nina (2021), de Paulo Alcântara; Depois do Universo (2022), de Diego Freitas. Coincidentemente, ou não, todos são filmes dirigidos por homens, que elegem mulheres para verem sofrer física ou psiquicamente — assim como nos três títulos norte-americanos citados acima.

Talvez haja um componente de gaslighting nessa seara — não pelo simples retrato de mulheres com distúrbios mentais, que existem e merecem ser retratadas no cinema assim como quaisquer outras. Mas chama a atenção a vontade de filmar de perto o corpo feminino histérico, incontrolável, pouco confiável, precisando ser estabilizado por homens muito mais razoáveis, ponderados, responsáveis. Aqui, é o namorado de Nina quem cuida do filho, quem lhe dá carinho, enquanto o professor de física representa a voz da razão e o símbolo paterno. A mãe é dada ao ataque de nervos, a colega de internação grita a qualquer passante, e Nina se converte num caldeirão de tiques e manias.

É difícil dizer que a personagem se desenvolva. Ela manifesta crises repetidas, sucessivas, em cenas que poderiam ser agenciadas em qualquer outra ordem pela montagem. Repete-se a dor, deixando pouco claro qual mensagem ou ponto de vista os autores gostariam de expressar através do périplo martirizante da mãe irresponsável, filha inconsequente e esposa problemática. No final, uma melhoria repentina tenta salvar o dia — que alívio ver Gabrielle Lopes deixar a cara de louca pela primeira vez! 

Em contrapartida, o filme não sabe dizer ao certo como ela chegou lá, nem o que provocou a salvação repentina. Algum remédio? Alguma terapia? Basta insistir para que as coisas se acertem naturalmente, mais cedo ou mais tarde? Mistério. O drama não está tão interessado em compreender sua reinserção social quanto está em observar sua degradação.

O Espaço Infinito (2023)
3
Nota 3/10

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