Já nos ensinava a sociologia que o desperdício é um elemento fundamental à percepção de riqueza. É preciso ter mais roupas do que poderia vestir, mais sapatos do que conseguiria usar, mais comida do que aguentaria comer, mais cômodos do que jamais ocuparia, mais objetos de decoração do que o tempo disponível para admirá-los. Possuir somente o dispensável remete à sobrevivência, ao mínimo necessário — em outras palavras, à pobreza. O indivíduo rico de verdade pode escolher o que quiser, inclusive nada do que estiver à sua disposição. O tédio e a desimportância face ao acúmulo (possuo bolsas de grife famosa, mas não me importo com elas) servem a menosprezar aquilo que tantas pessoas sonhariam em ter — e, na sua maioria, nunca terão.
Esta reflexão ajuda a pensar o cinema que Wes Anderson vem praticando há décadas. Em O Esquema Fenício, ele conta com quadros reais dos maiores pintores da história das artes plásticas, ornando cenários, sem qualquer função narrativa. Decora incontáveis locações, em minúcias de cores, objetos e texturas, para utilizá-las durante poucos segundos. Escala uma quantidade impensável de grandes nomes de Hollywood, para vê-los em pequenas aparições, muitas delas de poucos segundos ou minutos de tela. O diretor se dá ao luxo de incluir Charlotte Gainsbourg, Bill Murray, F. Murray Abraham, Willem Dafoe, Bryan Cranston e Hope Davis em aparições que beiram a figuração. Trata-se de nomes que diversos produtores sonhariam em reunir numa única obra.
No fundo, o único protagonista dos filmes de Wes Anderson é o próprio diretor, que insiste em chamar atenção para seu gesto tão marcante quanto opressor.
O elenco sempre constituiu uma peça fundamental desta gigantesca sala de brinquedos. Além dos nomes já citados, o autor conta, nos papéis centrais, com Benicio Del Toro, Mia Threapleton, Michael Cera, Tom Hanks, Rupert Friend, Mathieu Amalric, Riz Ahmed, Jeffrey Wright, Scarlett Johansson e Benedict Cumberbatch, para citar alguns. Entretanto, nunca demonstra interesse pelo estilo específico de cada um. Prefere a capacidade em anularem seus traços próprios em nome da comicidade apática que impõe a todos os personagens, sem exceção. Todos eles seriam capazes de incorporar nuances e trazer leituras únicas a cada personagem ou diálogo. Ora, as singularidades não importam: o que atrai Anderson, no trabalho de elenco, consiste neste prazer de moldá-los à sua imaginação prévia.
Fala-se muito no norte-americano enquanto uma artista do controle: as imagens precisam ser simétricas, os movimentos de câmera são cuidadosamente ensaiados, e as repetições de gestos e falas sublinham o tempo pensado para as piadas. Não existe o mínimo espaço para respiro, para o improviso, para a realidade. Anderson deseja que o mundo se adeque às suas vontades. Por isso, filma a Fenícia, Budapeste, a França, os Estados Unidos e uma ilha de cachorros exatamente da mesma maneira. Decora tanto uma cidade no meio do deserto quanto um hotel de luxo em raciocínio equivalente. Afinal, os bonecos são dele, e o rapaz pode fazer com eles o que bem entender. O cineasta concebe a mise en scène assim como um garoto muito rico brincaria com seus Playmobils, Legos, G.I. Joes, Barbies, carrinhos, montanhas-russas e trens de brinquedo.
O Esquema Fenício lida com um empresário corrupto (porém, malandro, gentil, engraçado), uma freira conservadora (porém, usando batom, sombra, bebendo álcool e empunhando adagas), um tutor encarregado de ensinar seu chefe sobre insetos (porém, empregado como secretário de negócios escusos), um príncipe poderoso (porém, sem poder nenhum), um tio possivelmente assassino (porém, acessível, livre, brincalhão). Há também um julgamento nos céus, perante a Deus, um afogamento no pântano, um grupo de revolucionários e a invasão de uma boate — além de aviões, reuniões empresariais e segredos comerciais guardados em caixas de sapato. Paira uma sensação de que tudo poderia se materializar, e justamente por dispor de todos os recursos à mão, pouco importa o que vier a acontecer de fato. Caso um novo astro da indústria surgisse na trama em novo cenário, num país distante, não surpreenderia ninguém.
O pressuposto da aleatoriedade e da inconsequência calibra o teor desta aventura para algo blasé, indiferente. Trata-se de um teor recorrente nas obras do diretor, capaz de filmar granadas, mortes em aviões, tentativas de assassinato e perseguições numa mansão como quem filmaria uma troca de “bom dia” entre dois familiares. O roteiro ama as gags e repetições em geral: Liesl sempre empunhando sua arma; Zsa-Zsa Korda sofrendo mais uma tentativa de morte; Bjorn esquecendo a mala no carro novamente; as trocas de gritos indistintos com cada empresário; as frases cuidadosamente escritas. “Pegue uma granada”. Espera-se que a recorrência de elementos, frases e situações reforce a atmosfera de doce delírio.
Logo, é difícil torcer por algum personagem, ou temer por um acontecimento em particular. As figuras em tela se equivalem, e poderiam ser trocadas sem qualquer dano ao esquema da narrativa. Alguém acompanha de fato a ordem das caixas de sapato, ou a diferença entre os oito filhos e uma dúzia de negociantes? E o aumento inesperado no preço de materiais de construção? Algum cinéfilo ainda distingue a caracterização de algum personagem em O Esquema Fenício daqueles de Asteroid City ou A Crônica Francesa? Os personagens parecem habitar o mesmo mundo de catástrofes inofensivas, alienígenas banais e violências esquecidas na cena seguinte. A bomba vai explodir em 15 minutos? “Tudo bem, pousamos em 10 minutos”.
Isso porque, no fundo, o único protagonista dos filmes de Wes Anderson é o próprio diretor, que insiste em chamar atenção para seu gesto tão marcante quanto opressor. Ele representa este autor à moda antiga, no sentido de centralizar toda decisão artística e esperar de diretores de fotografia, diretores de artes, montadores e atores que somente desempenhem o plano previamente traçado pelo gênio excêntrico. Caso um espectador descubra o trabalho do cineasta pela primeira vez com este longa-metragem, deve se encantar com este universo mágico, lúdico, ostensivo. O mesmo poderia ser dito de qualquer produção anterior assinada pelo cineasta, porque todas se parecem como maçãs, “e quem gosta de maçã irá gostar de todas, porque todas são iguais”, cantava Raul Seixas.
O Esquema Fenício é certamente muito bem pensado, decorado, sonorizado, iluminado, produzido, finalizado. Trata-se de uma experiência que enche os olhos pelo luxo de sua existência. Entretanto, o que Anderson teria a dizer a respeito desta ganância, do mundo empresarial, dos reinos do Oriente Médio, do embate entre crença e ceticismo, ou entre escravidão e regulamentação do trabalho? Algumas vozes sugerem que o filme seria uma resposta à guerra tarifária do governo Trump. Trata-se de uma interpretação exagerada, conveniente — um whishful thinking. O filme nasceu antes desse acontecimento, e evoca a política numa acepção excessivamente vaga para representar fenômenos tão específicos. A trama se encerra onde começou, na autossatisfação de ter, mais uma vez, construído o maior parque de diversões de Hollywood e do Festival de Cannes. Como de costume, Anderson deixa seus bonecos espalhados pelo chão, esperando que algum espectador arrume o quarto.